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72 anos da luta de libertação nacional palestina contra o colonialismo israelense

Por Marcelo Buzetto

A luta do povo palestino por soberania, independência nacional e autodeterminação não começou em 1948. Lutaram contra o Império Turco-Otomano e também contra o Império Britânico. Lembrando só um período mais recente, todos os palestinos que nasceram nos séculos XX e XXI lutaram diretamente, de alguma forma,  contra algum tipo de colonialismo. Todos os palestinos que nasceram nos séculos XX e XXI viram sua pátria ocupada por uma força militar estrangeira. Nasceram e cresceram em meio a desfiles militares das tropas de ocupação, leis que proibiam a liberdade de imprensa, a liberdade de organização sindical, a liberdade de organização política, a liberdade de circulação de pessoas e mercadorias, o direito de ir e vir. Também cresceram sendo humilhados por policiais, autoridades e outros membros do exército de ocupação. Eram proibidos de manifestar publicamente suas ideias, seja através de um poema, de uma música, de um artigo em jornal, de um livro, de uma assembleia ou nas ruas e praças de sua pátria. 
 
Será que alguém no Brasil pode imaginar e sentir o verdadeiro impacto que tal situação tem sobre a vida de milhares de pessoas que nasceram, tornaram-se adolescentes e adultos, tornaram-se pais e avós, e não tiveram o direito de ver, de vivenciar, de desfrutar de uma pátria livre, soberana e independente? 
 
Assim vivem os palestinos, numa epopeia de sofrimento, dor, opressão, esperança, resistência. E seguem em sua justa luta com diferentes formas e diferentes métodos, sempre se orientando por uma estratégia que, supostamente, deveria unificar todas as forças democráticas, populares e progressistas de seu povo. Mas nessa batalha pela independência nacional surgiu um inimigo muito mais poderoso que o colonialismo otomano ou britânico, e que teve apoio de ambos: o movimento sionista. O sionismo é um movimento colonialista e pró-imperialista de múltiplas faces e vertentes, e seduziu parcela considerável da comunidade judaica, em especial no período de 1897 a 1947, momento histórico de seu desenvolvimento e expansão mundial. Montou uma organização mundial, com filiais em vários países, com presença dentro e fora da Palestina, com uma estrutura financeira invejável, com apoio político de celebridades, artistas, autoridades, governos, meios de comunicação, e com um projeto de colonização da Palestina que se fortaleceu com a compra de terras e a conquista gradativa de partes importantes e estratégicas do território. A organização das colônias ou assentamentos sionistas na Palestina, em cinquenta anos (no período acima citado), criaram uma economia autossustentável, novas relações sociais e de trabalho, e um sistema de segurança e defesa, com treinamento militar, criação de uma milícia própria, produção de armas e munições, além de um audacioso e exitoso esquema de imigração judaico-sionista da Europa e demais regiões do mundo. Realmente o sionismo surpreendeu e inovou os métodos de colonização, mas nunca abandonando as formas tradicionais de conquista de território, que se utilizam da violência, da limpeza étnica e de políticas de apartheid, que são as características principais do chamado “Estado de Israel”, de 15 de maio de 1948 até os dias atuais.
 
A resistência palestina no auge da luta contra o sionismo e o imperialismo
Entre 1948 e 1964 tem início uma nova fase da resistência palestina, agora num momento onde existem revoluções anticapitalistas e antiimperialistas vitoriosas em todas as partes do mundo. Seja a Revolução Russa de 1917 e a criação da URSS, bem como seu papel decisivo na derrota do nazismo, seja a Revolução Chinesa de 1949, a  Revolução Egípcia de 1952,  a Revolução Cubana de 1959 e a Revolução Argelina de 1962, todos são importantes acontecimentos históricos que vão influenciar os rumos dos movimentos de libertação nacional. E a resistência palestina vai estudar essas experiências e buscar adaptá-las às condições específicas de sua luta. Também as vitórias obtidas pelo povo do Vietnã, em 1945, em 1954 e em 1975, sob a direção dos comunistas Ho Chi Mihn e Giap, vão dar mais ânimo e esperança para que os palestinos construam suas próprias organizações de resistência. Os palestinos vão se identificar muito com as experiências em curso no Egito e na Argélia, e Gamal Abdel Nasser, com o Movimento dos Oficiais Livres e com a União Socialista Árabe, se tornará uma referência e principal fonte de apoio à causa palestina no mundo árabe (entre 1952 e 1970). A Revolução na Argélia também impulsionou o movimento nacional palestino, e fortaleceu a ideia que “só a luta armada poder libertar a Palestina”. Do interior do Movimento Nacionalista Árabe surgem lideranças como Yasser Arafat e George Habash. O primeiro criou o Movimento de Libertação Nacional (FATAH). O segundo criou a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP). Os dois se encontrariam mais tarde. Em 1964 é fundada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), originalmente um braço da Liga Árabe. A ideia é ser uma frente de organizações palestinas, com apoio financeiro dos países árabes. Em 1969 Yasser Arafat assume a presidência da OLP e conclama todas as organizações da luta armada a se unir numa única ferramenta de luta contra o “Estado de Israel”, e com autonomia em relação aos países árabes, fazendo dos palestinos os principais protagonistas da luta de libertação nacional. Desde de 1964 a OLP tentava construir o “Exército Palestino de Libertação”, formado por organizações político-militares palestinas, e em cooperação com governos árabes como os da Jordânia, Egito, Síria, Iraque e Líbia (após 1969). Entre 1969 e 1988 a URSS e a ampla maioria dos chamados países socialistas já se posicionavam a favor da luta do povo palestino, dentro e fora da Organização das Nações Unidas (ONU). Na ONU esse apoio foi fundamental. A aliança entre Bloco Socialista, China, Liga Árabe e Movimento dos Países Não-Alinhados resultou em inúmeras resoluções denunciando o colonialismo israelense, defendendo o direito de retorno dos refugiados, a retirada de tropas israelenses dos territórios ocupados, inclusive Jerusalém, condenando o sionismo, que foi qualificado como movimento racista, etc.
 
Entre 1969 e 1988 o movimento nacional palestino atinge seu auge na luta pela libertação de sua pátria, ganha projeção internacional, conquista o reconhecimento da OLP como única e legítima representante do povo palestino e torna-se uma esperança para todo o mundo árabe. Também a OLP constrói uma estrutura política, econômica, social e cultural nos campos de refugiados, dando assistência para as famílias, em especial as famílias dos mártires e dos presos políticos em cárceres israelenses. A OLP teve sua importância, e buscou construir a unidade necessária que todo movimento anti-imperialista necessita para sobreviver e ser vitorioso. Mas no seu interior sempre houve divergências, cisões e luta interna, como era previsto, devido à natureza das organizações que faziam parte dessa experiência de frente política, social e militar. Nos anos 70 e 80 a OLP amplia sua organização nos campos de refugiados palestinos no Líbano, e esse país árabe torna-se o centro da resistência antissionista e anti-imperialista no Oriente Médio. As batalhas no Líbano, contra as forças reacionárias,  neofascistas, pró-Israel e pró-EUA, vão fortalecer a unidade árabe-palestina-libanesa, mas também vão surgir no seio do movimento da resistência diferentes avaliações sobre os rumos da OLP em Beirute e em outras regiões do país. A vitória da Revolução Islâmica no Irã, em 1979, também tem influência sobre a resistência palestina e a resistência libanesa. O Massacre de Sabra e Chatila, campo de refugiados palestinos em Beirute, em setembro de 1982, vai causar uma indignação internacional. As fotos de bebês, idosas, crianças e mulheres grávidas , civis, assassinados covarde e cruelmente por terroristas do partido de direita libanês Falange, com a cumplicidade e apoio do exército israelense, levou a própria população israelense a organizar uma manifestação com 200 mil pessoas em Tel Aviv, exigindo a retirada das tropas israelenses do Líbano, gritando “Não em nosso nome!”.
 
Enquanto isso dentro da Palestina ocupada diferentes formas de luta e de resistência se desenvolviam, com movimentos de camponeses, estudantes, trabalhadores, mulheres, professores, intelectuais, membros de alguma organização da OLP, militantes  independentes ou ligados a alguma liderança religiosa muçulmana ou cristã. 
 
Nos anos 80 vão se forjando outro braço da resistência palestina, por fora da OLP, organizações nacionalistas islâmicas, também impulsionadas com apoio externo, mas com base social sólida nos territórios ocupados, os casos do Movimento de Resistência Islâmica (HAMAS) e Jihad Islâmica, por exemplo. Assim a resistência palestina vai se desenvolvendo das mais diferentes formas, influenciada pela conjuntura política regional e internacional e contando com uma diversidade de movimentos e organizações.
 
A resistência palestina entre 1988 e 1993: sob a influência dos Acordos de Oslo
Desde o início dos anos setenta setores do movimento árabe e palestino vinham debatendo sobre a possibilidade de aceitar a Resolução 181 da ONU, Plano de Partilha da Palestina, de 29 de novembro de 1947. Segmentos da burguesia árabe e palestina já se manifestavam nessa direção, assim como muitos partidos comunistas e socialistas árabes que estavam sob a influência da URSS. Yasser Arafat, presidente da OLP, fez inúmeras viagens à Moscou e a outros países árabes, e no diálogo com representantes desses governos surgia uma questão: a continuidade do apoio à causa palestina deve estar ligada à construção de um acordo com Israel. No interior da OLP e do próprio povo palestino isso era inconcebível, por isso setores da cúpula da OLP próximos a Arafat, e sob o seu comando, foram construindo um acordo pelo alto, sem participação ativa e massiva do povo palestino ou de suas legítimas organizações, de dentro ou de fora da OLP. Esse método personalista de direção política levou a OLP para encontros secretos com uma delegação israelense na cidade de Oslo, na Noruega, entre 1988 e 1993, visando encontrar um entendimento baseado na conhecida solução de dois estados, um que já existia, Israel, e outro que poderia nascer, o Palestino. Na verdade, as negociações foram imposições de Israel e dos EUA, e a delegação palestina somente concordou com os termos apresentados, e buscou convencer o povo palestino que aquele era o único caminho, como bem percebeu e denunciou o intelectual estadunidense Edward Said. O reconhecimento de Israel e a defesa da solução de dois estados não foi tema de amplos debates no interior do movimento nacional palestino. Também não houve uma consulta popular ou referendo, para que o povo pudesse decidir o que queria. Um acordo construído pelas mãos de assessores da cúpula da OLP, homens de confiança de Arafat, na sua ampla maioria burocratas que viviam nos EUA e procuravam ter apoio para suas ações entre membros do governo estadunidense.
 
Essa iniciativa pelo alto, sem participação democrática e coletiva das organizações que faziam parte da OLP, gerou mais conflitos internos e divisões no movimento nacional palestino. Os acordos de Oslo foram uma rendição da cúpula dirigente da OLP, em especial do FATAH. Começou aí uma colaboração estreita com autoridades de Israel e dos EUA, principalmente na formação da Autoridade Nacional Palestina (ANP), hoje Autoridade Palestina (AP), em várias áreas, inclusive na segurança. A criação da AP fez voltar para os territórios ocupados muitos dirigentes da OLP que estavam no exílio, e a AP se transformou num “governo” com um corpo de cerca de 180 mil funcionários públicos. O acordo implodiu a OLP, que viveu um processo de desmobilização e perda de prestígio, principalmente devido às denúncias de corrupção e privilégios para muitos dirigentes. A desmoralização da OLP abriu caminho para a ascensão do HAMAS e demais organizações que tomaram a decisão de continuar a resistência contra Israel.
 
Os impasses e desafios para a resistência palestina: 72 anos depois do início da Nakba
A decisão de assinar o Acordo de Oslo se reveleu profundamente equivocada e amplamente contrária aos direitos inalienáveis do povo palestino, como o direito ao retorno, assegurado pela Resolução 194 da ONU. Essa imposição denominada “Acordo” também não permitia a discussão sobre outros dois temas centrais e históricos do movimento nacional palestino: a questão de Jerusalém e a libertação dos presos políticos. Ao aceitar a imposição israelense, de não discutir tais temas, o Acordo de Oslo já demonstrava a vitória do governo colonialista de Israel, apresentado pela mídia empresarial e pró-imperialista como uma nação tolerante, democrática e que fez concessões visando buscar a paz na região do Oriente Médio. 
 
Nenhuma decisão anterior da cúpula da OLP tinha causado tanta desconfiança, incerteza e divergência no interior da luta palestina. A partir de 1993 e 1994 presenciamos um processo de contínua cisão e o desenvolvimento de muitas contradições que foram debilitando a resistência palestina diante de seu inimigo principal. A Autoridade Palestina tornou-se, conforme designou Edward Said, um “gestor da administração colonial” israelense. A burocracia criada conquistou privilégios, e aproveitou-se do dinheiro que chegava via Israel para acumular riqueza e poder.
 
Um dos principais desafios da resistência palestina, daqueles setores do movimento de libertação nacional que foram contra os Acordos de Oslo, foi travar a batalha de ideias e da comunicação, para tentar explicar à população as mentiras e as ilusões trazidas pelo suposto “Acordo de paz”. Muitos setores palestinos, cansados de tanta opressão e violência, acabaram, por boa fé, acreditando que agora poderiam viver em paz, trabalhar e construir uma vida digna. Os setores mais combativos da resistência palestina combateram diariamente a propaganda pró-Acordos de Oslo, e a realidade foi demonstrando que tinham razão. Mas as condições favoráveis à uma análise crítica, que proporcionaram um contundente rechaço dos Acordos de Oslo, se desenvolveram às custas de um altíssimo preço pago pelo povo palestino, em especial os mais pobres, e particularmente os mais pobres de Gaza. Foi preciso o aumento dos assentamentos ilegais sionistas na Cisjordânia, a construção do muro do apartheid em território palestino, o crescimento do número de casas de palestinos demolidas, o aumento das prisões políticas, dos assassinatos, e das ofensivas militares israelenses, principalmente – mas não só – contra Gaza, a política de “judaização” de Jerusalém, a decisão de Israel de reafirmar Jerusalém como a “capital eterna e indivisível do Estado Judeu” e pedir às nações a transferência das embaixadas de Tel Aviv para a Cidade Santa, para que setores da sociedade palestina pudessem perceber que, de fato, os “Acordos de Oslo”  foram uma derrota e devem ser rechaçados e abandonados pela OLP e pela Autoridade Palestina. Talvez o limite tenha sido a apresentação, pelo presidente dos EUA, Donaldo Trump, do chamado, por ele, de “Acordo do Século” (os palestinos chamam de “o roubo do século”). Essa proposta enterrou de vez muitos compromissos firmados em Oslo, piorando ainda mais a situação do povo palestino, dando mais direito ao governo israelense de continuar expandindo seu controle territorial sobre áreas que ainda não estão sob controle absoluto do colonialismo sionista. O governo de Israel, é óbvio, elogiou e apoiou a iniciativa ilegal e injusta de Trump.
 
Esse é o momento atual na Palestina, um momento que abre as portas para que a possibilidade de unidade nacional palestina seja construída, seja fortalecida, pois existe um reconhecimento da ampla e esmagadora maioria da população palestina que o único caminho que pode trazer a paz e a justiça é o caminho da resistência ativa, popular, unitária e de maneira coordenada. Nunca foi tão urgente vencer o desafio da construção da unidade contra a ocupação sionista. Mas esse não é um processo simples ou isento de problemas e contradições. Mas toda a história dos movimentos de libertação nacional antiimperialistas, toda a história da resistência palestina e toda a história recente do mundo árabe e Oriente Médio (em especial no Líbano e na Síria) ensinam que é sim possível derrotar o sionismo e o imperialismo, mesmo quando atuam de maneira conjunta e investindo muitos recursos materiais e humanos numa guerra. A construção de uma coordenação de organizações, de um Comando Unificado da Revolução Palestina sempre foi um dos principais desafios desde 1969. Observamos que a vontade dominante no interior do povo palestino é a unidade de todas as organizações da resistência, uma unidade semelhante àquela que existe entre os prisioneiros palestinos que estão nos cárceres israelenses. A resistência palestina enfrenta uma situação de impasse, mas continua muito ativa na perspectiva de encontrar um caminho alternativo ao de Oslo, e para isso precisa demonstrar que a Revolução Palestina continua necessária, e que só será vitoriosa sendo parte da Revolução no Mundo Árabe, e parte de todas as lutas por justiça, contra o imperialismo e por libertação nacional existentes em todas as partes do mundo.
 
Nesses 72 anos o que aprendemos é que nada, nem ninguém, pode deter a marcha de um povo pela sua libertação.
 
Marcelo Buzetto é professor universitário, mestre e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais NEILS PUC-SP, com Pós-Doutorado em Ciências Sociais pela UNEP Marília. É membro da diretoria do IBRASPAL e coordenador da Campanha Global pelo Retorno a Palestina – Brasil.

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