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73 anos de Nakba: Ontem, Hoje e Amanhã

Hoje se completam 73 anos daquilo que os palestinos chamam de al-Nakba — “A Catástrofe”, em árabe. 15 de maio de 1948 foi o dia escolhido pela Palestina para simbolizar e rememorar os brutais massacres e expulsões de seu povo realizados por Israel. Simbolizar, pois a Nakba não começou e nem acabou em 1948. Em síntese, é preciso recorrer aos números para fornecer ao leitor uma noção do impacto inicial da Nakba: 700.000 palestinos foram forçados à situação de diáspora, 530 vilas foram despovoadas ou destruídas, 78% do território palestino se transformou em Israel, 15 mil palestinos foram mortos — muitos desarmados — 70 massacres ocorreram. Hoje, o direito de retorno, fundamental para a identidade judeo-israelense, é negado para estes palestinos e seus descendentes.

A Catástrofe é fruto de um longo processo de interferência externa imperialista e colonial perpetrado pelas potências europeias — principalmente pelo Reino Unido — e pelas diversas organizações sionistas da Europa e dos Estados Unidos. A data de 15 de maio não é mera coincidência, pois o dia 14 de maio de 1948 marca outros dois eventos que impactaram profundamente o território palestino: o fim do Mandato Britânico da Palestina e, consequentemente, o dia da fundação do Estado de Israel.

Portanto, o que é lembrado pelos israelenses como um dia glorioso, do nascimento de sua nação e da conquista de autodeterminação é, para os palestinos, o dia que marca o roubo de suas terras e de seu direito a decidir seu próprio destino; o começo do processo de limpeza étnica e da colonização impiedosa que continua até hoje. 

Compreender a Nakba é fundamental para desmontar muitos dos mitos construídos ao redor dos conflitos entre Israel e Palestina. Fundamental para entender o porquê da palavra “conflitos” ser um tremendo eufemismo para o que foi — e ainda é — um massacre. O 15 de maio deixa bem claro que a questão não se origina de um conflito religioso milenar, mas sim do imperialismo e colonialismo europeu no oriente-médio do século XIX, tal qual do extremismo sionista. 

Fotografia por:UNWRA Archives

 

A questão não é religiosa, é por terra e pelo direito de autodeterminação. O desenvolvimento pode ser complexo e cheio de nuances, mas a sua raiz está em dois termos: colonização e limpeza étnica. Francirosy Campos Barbosa, antropóloga da USP e coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes — define a questão da seguinte forma: “Não é uma luta religiosa, é uma luta colonialista, violenta, que usurpa o povo palestino do seu direito de ir e vir e de existir. Por isso, resistem há tanto tempo, por isso o direito de retorno à terra é fundamental.”

“Guerra” também é um termo que não caracteriza honestamente a luta palestina. Uma guerra pressupõe uma equiparidade mínima de forças entre os dois lados em combate, o que não é o caso da Palestina nem em 1948 e nem agora. Na véspera da Nakba, os combatentes palestinos que sobreviveram à brutal repressão britânica somavam algo em torno de 3 mil soldados mal armados, que mais tarde se uniriam com 4 mil soldados voluntários do Exército de Libertação Árabe. Já os israelenses tinham milícias judaicas com aproximadamente 40 mil homens bem equipados e estruturados pelos seus aliados ingleses. Hoje a situação é ainda mais díspar: o exército israelense é uma moderna máquina de guerra financiada pelas potências ocidentais, com mais de 600 mil soldados — 170 mil na ativa —, 1600 tanques, 7500 veículos blindados e 600 aviões de guerra. Os diferentes grupos armados palestinos alcançam algo em torno de 50 mil homens. Outro dado importante, e raramente lembrado, é que a população da Faixa de Gaza, um dos lugares mais densamente povoados do mundo e alvo constante das bombas israelenses,  tem  42% de seus habitantes  compostos de crianças de até 14 anos

Um breve panorama da história palestina até A Catástrofe

Fotografia por: AFP

 

Para entender a Nakba, é preciso voltar até o século XIX, quando a Palestina ainda estava sob domínio do Império Turco Otomano. Era um período de um convívio relativamente harmonioso entre os mulçumanos, cristãos e judeus que então ocupavam o território. Além disso, as três comunidades religiosas gozavam de autonomia administrativa dentro dos territórios cedidos a cada um deles. Em 1878, o censo otomano indicava a seguinte demografia: 85.5% eram mulçumanos, 9.2% eram cristãos e 5.3% eram judeus. 

Na europa, o final do século XIX viu o desenvolvimento do Sionismo, tendo Theodor Herzl como seu principal fundador. O sionismo é um movimento nacionalista e uma ideologia que prega o re-estabelecimento de um Estado judeu na Palestina. Em 1897,  Herlz fundou a Organização Mundial Sionista, o que irá progressivamente aumentar o número de migrantes judeus para o território palestino ao longo das próximas décadas. Mas no início, ainda sem apoio de grandes Estados europeus, as migrações eram ainda tímidas e modestas. É só com a queda do Império Otomano e com o controle britânico da Palestina que os números subiram vertiginosamente.

3 acordos feitos pelo governo britânico exemplificam a gravidade dos problemas que as interferências e ingerências dos ingleses causaram na região. Vamos analisar brevemente cada um deles a seguir: 

  1. Acordos entre o Reino Unido e o Shariff de Mecca:

Entre 1915 e 1916, o Alto Comissário Britânico do Egito, Henry McMahon, trocou 10 correspondências com Hussein bin Ali. Nestas cartas, o inglês prometia uma palestina Árabe para o Shariff, caso ele liderasse uma revolta contra os seus senhores otomanos. O acordo foi cumprido por Hussein, uma revolta foi liderada e mais tarde os Otomanos perderam o controle da região. O Reino Unido agora devia a Palestina para Hussein e os árabes da região.

  1. Acordo de Sykes-Picot entre Reino Unido e França

Em 1916, um tratado secreto foi acordado entre as duas potências para dividir os territórios Otomanos no Oriente Médio entre França e Reino Unido. A Palestina ficaria sob domínio Inglês, ou seja, os Ingleses prometeram a Palestina para si mesmos

  1. A Declaração de Balfour

 

Em 1917, após anos de negociações com as organizações sionistas e ainda antes da derrota do Império Turco-Otomano, o governo britânico declarou publicamente o seu apoio em estabelecer um “lar nacional para o povo Judeu” na Palestina. Ou seja, o Reino Unido começou a dever o território palestino também para os sionistas.

Não precisa ser nenhum doutor em relações internacionais para entender a confusão que os britânicos criaram na geopolítica local. Os Ingleses conseguiram prometer o território, ao mesmo tempo, para os Árabes de Mecca, para os Judeus Sionistas e para si próprios. Rapidamente após o fim da Primeira Grande Guerra, o governo Britânico estabeleceu o Mandato Britânico Palestino, honrando assim primeiro o acordo feito com os francêses e, ao mesmo tempo, privilegiando geopoliticamente a sua própria nação. 

A partir daí as coisas iriam se complicar. O Mandato destruiu as formas de gestão autônomas dos mulçumanos, cristãos e judeus e começou,  a partir de 1920, a honrar a Declaração de Balfour, facilitando cada vez mais a migração de judeus europeus para a palestina e auxiliando a criação de assentamentos para eles. Em 1914, a população judaica na região era de 35 mil judeus, 8% da população. Em 1922, esse número subiu para 83 mil. Em 1932, 192 mil. Em 1948, os judeus na Palestina eram 31,5% da população, 656 mil. 

Fotografia por: The Matson Photo Service

 

Esse aumento repentino de migrações, somados à crescente repressão contra árabes palestinos pelo Mandato Britânico, causou graves problemas. Muitos migrantes compraram largas extensões de terras de árabes não palestinos, expulsando os árabes palestinos que trabalhavam e habitavam nelas. Esses expulsos formaram organizações políticas de palestinos em movimentos por autodeterminação nacional. À medida que cresciam os movimentos nacionalistas palestinos, crescia a repressão britânica — muitas vezes auxiliada por milícias judaicas. À medida que os anos passavam, as tensões cresciam, tanto internamente quanto externamente. Stephen Wise, um sionista norte-americano, disse num congresso sionista em Nova Iorque em 1931: “Eu diria para a Inglaterra, se eu pudesse, que uma Palestina árabe é uma ameaça para o Reino Unido e para o mundo, mas que uma Palestina judaica é uma ferramenta para o Reino Unido e uma benção para o mundo”.

Essa pressão internacional não veio sem seus mitos e propagandas. Era comum os discursos e declarações que caracterizavam a Palestina como um deserto sem lei que precisava ser civilizado. Que lá um povo fanático e primitivo habitava a terra em uma condição de barbárie. Negavam até mesmo a existência de quantidades expressivas de cristãos palestinos árabes para poder legitimar suas narrativas colonizadoras. Ficava cada vez mais explícito que uma das condições fundamentais para a colonização do território seria a expulsão e remoção dos palestinos que habitavam aquela terra, dando origem assim à prática de limpeza étnica que perdura até hoje.

As tensões culminaram nas Revoltas de 1936-39, liderada por árabes palestinos e de caráter nacionalista palestino, que se opunha ao domínio colonial britânico e as crescentes ondas de migração em massa de judeus promovidas pelas potências europeias. Cerca de 7 mil palestinos se mobilizaram nos protestos que tomaram a cidade. A repressão foi intensa: mais de 5 mil palestinos árabes foram mortos, 108 foram mortos por enforcamento, quase 15 mil ficaram feridos. Posteriormente a repressão aumentou: o Mandato dissolveu o Alto Comissariado Árabe, demoliu casas, perseguiu manifestantes e criou campos de concentração para quem os britânicos julgassem suspeitos. 

Com a Segunda Guerra Mundial e a dissolução violenta dos movimentos nacionais palestinos, as tensões só explodiriam de novo com a criação da ONU e o plano de partição da Palestina aprovado em 1947. Os britânicos, vendo que o território era pouco vantajoso em relação às tensões da região, abdicaram do território, cabendo à recém criada Organização das Nações Unidas a resolução da questão. A partição dividiria o território de maneira descontinuada, os palestinos — que eram a maioria — ficariam com 47% do território, os judeus, com 53%. Jerusalém permaneceria uma cidade internacionalizada. A resolução agradou os judeus e enfureceu os palestinos. Logo, uma espiral de conflitos se formaria, as tensões aumentariam mais ainda e, finalmente, no dia 14 de Maio, dia da retirada das forças britânicas da região, o avanço massivo dos judeus sobre território palestino começou.

 

Milícias judaicas, agora israelenses, tomaram cerca de 33% a mais do território determinado pela ONU. Suas forças maiores, mais poderosas e mais organizadas, dizimaram os combatentes palestinos, suas cidades e suas vilas. Saques ocorreram, inocentes foram mortos e mais de 700 mil palestinos fugiram forçadamente de suas terras. David Ben Gurion, líder israelense e primeiro chefe de governo do recém formado Estado de Israel, uma vez descreveu as táticas de suas tropas da seguinte maneira: “Em cada ataque, um golpe decisivo deve ser feito para resultar na destruição de casas e na expulsão da população”. O sionismo via como imperativo a expulsão dos palestinos para a criação de seu Estado Judeu.

E assim, de maneira resumida, foi como ocorreu a Nakba. Através da força bruta, da violação de acordos internacionais, de crimes de guerra, da limpeza étnica, da colonização e da negação da existência de um povo, assim Israel nasceu. E é justamente por isso que é possível afirmar que a Nakba ainda ocorre, pois estas práticas ainda são usuais na contemporaneidade.

Nakba hoje e o direito de existir do povo palestino

De 1948 até hoje, a situação dos palestinos só piorou. O avanço sobre as terras palestinas determinadas pela ONU em 47 aumentou mais e mais. Os palestinos que vivem sob território de Israel são cidadãos de segunda classe, enquanto os que vivem em territórios ocupados vivem em prisões a céu aberto. Grupos político-militares que se formaram após a Nakba se desenvolveram de maneira complexa demais para serem reduzidos ao termo “terroristas” e a disparidade de forças entre estes grupos e o exército de Israel nunca possibilitou que o conflito entre todas as partes fosse chamada de guerra.

Ataques contra campos de refugiados, ataques com armas químicas, ataques contra civis, contra crianças, contra médicos e contra jornalistas são apenas parte das estratégias israelenses de combate. Israel hoje continua desapropriando e expulsando palestinos de suas casas e terras, continua a estabelecer colônias em território palestino, continua a erguer muros e a controlar o fluxo de pessoas, água, eletricidade e comida nos territórios palestinos. O sionismo passou de ideologia para política de Estado. Essa política necessita de manter os palestinos como minoria, necessita expulsá-los da região para submetê-los à dominação. As políticas de habitação israelenses dificultam até hoje o acesso à terra para árabes; 90% da água própria para consumo se encontra nas mãos do Estado de Israel; mais de 100 vilas palestinas não constam nos mapas do governo.

Imagem por: BDS Movement

 

Ahmed Shehada, presidente do Instituto Brasil Palestina, analisa a atual situação dos palestinos da seguinte forma: “A situação atual, de acordo com estatísticas de organizações humanitárias da ONU, mostra que 43% do povo palestino são refugiados. Existe claramente insegurança alimentar na Faixa de Gaza, sem mencionar a falta de água potável. As forças de ocupação israelense continuam a impor um bloqueio de terra e um bloqueio marítimo sob quase 2 milhões de pessoas já por quase 13 anos, tornando-se o pior e mais longo castigo coletivo na história recente.” Não faltam exemplos para comprovar que Israel promove a colonização, a limpeza étnica e o apartheid contra os palestinos.

Para concluir este artigo, O Sabiá convidou três vozes que militam aqui no Brasil pela causa palestina para refletir sobre a importância do Nakba e da luta por autodeterminação dos povos palestinos. São Dr. Ahmed Shehada, presidente do Instituto Brasil Palestina (IBRASPAL); Dra. Francirosy Campos Barbosa, antropóloga e pesquisadora de comunidades muçulmanas na Universidade de São Paulo (USP); e Laila Karajeh, jovem militante da causa palestina. 

“Para os Palestinos a Nakba não acabou, ela é diária, prova disso são os acontecimentos recentes em Sheikh Jarrah.” diz a doutora em antropologia em referência aos acontecimentos do dia 10 de Maio “A violência contra os palestinos é fruto sim de colonização, além de uma limpeza étnica como aponta Ilan Pappé. Gaza ainda está sob ocupação, é só observar  seu isolamento socioespacial e as diversas vulnerabilidades: corte de luz, bloqueios, controle de suas fronteiras terrestres, espaços aéreos e marítimos . É uma prisão a céu aberto. Este processo de colonização nunca acabou

Fotografia por: Suhaib Salem/Reuters

 

Já a jovem Laila, declara: “Por conta da Nakba existem palestinos ao redor do mundo todo e isso mostra nossa resistência. Mesmo longe, não esquecemos nossa casa, nossas raízes. É uma luta pela vida, pela libertação de um povo que vive uma limpeza étnica! Apoiar a Palestina é apoiar a humanidade!”

O Dr. Ahmed acrescenta que  “podemos dizer que o atual cenário que a pátria e o povo palestinos, com sua história, herança e identidade, foram submetidos a um massacre histórico e um roubo como nenhum outro no século XX e no século XXI. O que esta acontecendo é somente uma continuidade de um processo criminoso de limpeza étnica e genocídio.” e ainda diz que “eles praticam o assassinato e a limpeza étnica exatamente como seus antecessores, os ancestrais terroristas das gangues judias Haganah e Irgun, que são a base deste exército terrorista fascista.”

Sobre a atual escalada do processo de apartheid que gerou o atual conflito que ocorre na Palestina, o presidente da IBRASPAL comenta: “Com o início do mês abençoado do Ramadã, gangues de colonos terroristas intensificaram a série de ataques diários, apoiados pelo exército e forças policiais israelenses, contra cidadãos de Jerusalém e locais sagrados que pertencem a palestinos, muçulmanos e cristãos.”

Ahmed ainda chama atenção para os comentários desonestos pela mídia, pelos representantes de Israel e até mesmo de deputados brasileiros, sobre como Israel avisa os moradores antes de bombardear prédios residenciais. Segundo o doutor “Em apenas 3 casos o exército de ocupação avisou dos bombardeios, mas apenas por conterem agências de notícias e assessorias de imprensa O alerta foi feito não por causa da moral deste exército degenerado, mas sim por medo da mídia internacional.” 

Ele conclui sua fala impactante da seguinte forma: “Não há equivalência de poder. Não há paridade! Mas a resistência é uma honra e dever . O Artigo 51 da Carta das Nações Unidas determina a legitimidade do direito de resistência aos povos. A resolução No. 3103 do ano de 1973 diz que a luta dos povos por seu direito à autodeterminação e independência é uma luta de um legítima e totalmente coerente com os princípios do direito internacional.

Por fim, gostaríamos de finalizar essa matéria que rememora essa tão importante data com uma citação do doutor em direito internacional pela Universidade de São Paulo, Salem. H. Nasser. Não conseguimos entrevistá-lo, mas a conclusão de sua introdução ao livro “A Questão da Palestina” de Edward Said é precisa e fundamental para o dia de hoje:“Hoje, as perguntas que fazia há três décadas continuam inteiras e estão dispostas diante de nós, à espera de uma resposta convincente: Por que padrão moral ou político espera-se que abandonemos nossa reivindicação à nossa existência nacional, à nossa terra e aos nossos direitos humanos? Em que mundo não haveria uma discussão quando todo um povo é considerado juridicamente inexistente, embora exércitos sejam mobilizados para combatê-lo, campanhas sejam orquestradas até contra o seu nome, a história seja modificada para “provar” sua inexistência?”

 

Por Léo Vaz -Jornalismo, Cibernética e algumas coisinhas há mais. -24 anos, Rio de Janeiro

 

Fonte: Sabiá (Mídia independente, composta por uma equipe disposta a democratizar o conhecimento. Sem fins lucrativos.)

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