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Anne Frank e Deena “vidas precárias” de um luto não compartilhado

Por Francirosy Campos Barbosa

A primeira vez que ouvi falar da Palestina, eu tinha 14 anos. Como boa aluna da disciplina de História, sempre preparava os seminários com informações adicionais aos livros lidos. Naquele ano, o seminário era o livro “O diário de Anne Frank”, um livro muito popular, um clássico que narra a vida de uma menina judia e sua família que se escondia em casa durante a perseguição nazista. 
 
Não demorei muito para continuar lendo sobre os perseguidos pelo nazismo: os sobreviventes do Holocausto. Esta que foi uma das maiores tragédias humanas que o mundo vivenciou, ainda permanece viva na memória de muitos; e não tem como ser diferente. Mas, sempre me pergunto, por que a Nakba Palestina não tem o mesmo efeito sobre as pessoas? Por que o sofrimento do povo palestino não leva a maioria de pessoas a compartilharem textos, imagens ou participarem de passeatas?
 
A Nakba Palestina persiste por 72 anos e constitui o universo de vidas precárias ao qual são submetidos os palestinos, quando suas vidas perdidas e violadas não tem o mesmo peso do que vida de judeus em campos de concentração. Judith Butler diz que “a perda de algumas vidas ocasionam o luto; de outros, não; a distribuição do luto decide quais tipos de sujeitos são e devem ser enlutados...”. Para completar, também nos é proibido o dissenso, pois falar sobre a crueldade do Estado de Israel virou motivo para ser chamado de antissemita, como se a violência que atinge o povo palestino pudesse ser apagada do noticiário e das vivências de mais de 5 milhões de palestinos espalhados no Oriente Médio e em outras regiões do mundo. É preciso contestar o controle sionista sobre a judaicidade, assim como fez Judith Butler em “Caminhos divergentes”, contestar a violência colonialista que corrobora para limpeza étnica do povo palestino. 
 
Determinados enquadramentos étnicos decidem quem é humano e quem não é, deixando claro que palestinos estão na categoria abjeta enquanto sujeitos. Aqui, o enquadramento étnico também pode estar relacionado ao Islam, sendo esta a religião da maioria dos palestinos. A barbárie associada ao Islam constitui o binarismo Oriente/Ocidente. A Palestina faz parte deste Oriente inventado pelo Ocidente expresso nos textos de Edward Said, mas se tomarmos a palavra árabe para estranho, gharib, que deriva da palavra gh-r-b, cujo sentido remete a ocidente (Maghreb, da mesma raiz, é a região ocidental do mundo árabe), no sentido oposto, na origem, o esquisito é o ocidental. Este mesmo ocidente esquisito contribui para o silenciamento de mortes de palestinos. 
 
Por que existem vidas não vivíveis? (para usar os termos de Judith Butler). Estranho somos nós – humanidade – que não enxergamos palestinos com os mesmos olhos que foram capazes de enxergar o Holocausto. Somos estranhos quando não nos posicionamos contra a opressão colonizadora sionista. 
 
Se a Segunda Guerra Mundial durou seis anos, a limpeza étnica perpetrada pelo Terceiro Reich durou doze. A opressão vivida por palestinos já dura setenta e dois anos, o que torna a ocupação sionista em territórios palestinos a mais longa e cruel da história. A UNRWA relatou que a taxa de transtorno pós-traumático havia aumentado em 100% em 2014, e que 42% dos pacientes tinham menos de nove anos. Como viver em um mundo onde crianças não conseguem dormir por causa dos seus pesadelos? Como compactuar com a violência do Estado de Israel, sendo este uma potência militar que não se compara ao que existe em Gaza?
 
Infelizmente, continuamos falando por outro, a outros, sem conseguir que de fato os próprios palestinos possam falar por si, pois vivem em uma prisão a céu aberto na qual são submetidos a todo tipo de violências e constrangimentos. Palestinos são impedidos de ir e vir, assim como pessoas estrangeiras e de origem palestina são impedidas, muitas vezes, de entrarem na Palestina, sendo submetidas à violência policial de toda ordem. 
 
Os limites impostos pelo governo de Israel são cruéis e usurpadores de direitos e continuamos silenciando - e pior, compactuando com eles - na medida em que fazemos intercâmbios com universidades israelenses ou consumimos seus produtos. Se aplicássemos o BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) com rigor, a situação Palestina seria outra, mas continuamos acreditando na boa vontade de sionistas de dar dignidade aos palestinos. 
 
Reduzir o judaísmo ao sionismo é roubar a identidade religiosa das mais importantes de toda constituição do homem em sociedade. Ser judeu não significa compactuar com a violência cometida contra palestinos. O fato é que sionistas usam a religião para justificar suas atrocidades, tomando os ensinamentos religiosos como porta para destruição. É preciso que judeus antissionistas como Judith Butler, Ilan Pappé, Noam Chomsky, Shlomo Sand e outros tantos  continuem se pronunciando e se colocando contra a violência bem como usurpação do território Palestino. 
 
Assim como Anne Frank, são muitas as crianças que tiveram sua infância roubada e destruída. A orfandade é grande em campos de refugiados palestinos. É comum encontrarmos relatos como o de Zurik, 11 anos: “tenho tanto medo que esse bombardeio me acerte”. A família de Zurik não dormia há dias quando ele fez este comentário. Deena, 10 anos diz: “tenho medo de dormir sozinha”, pois quando dorme, ela sonha com bombardeio (Ver livro de  Mohamed Omer – Em Estado de Choque). 
 
O ciclo traumático em Gaza se retroalimenta. O trauma das crianças também atinge seus pais. Os drones espalham medo e terror entre as crianças. Essas crianças são obrigadas a se acostumar com o barulho de bombas, que destroem suas casas, matam seus parentes e, sobretudo, ver sua infância sendo roubada, sem perspectiva de ter uma vida como qualquer outra criança de sua idade. Há palestinos que nasceram em campos de refugiados e nunca conheceram outro lugar. A experiência é sempre de uma vida precária em todos os sentidos. Viver e morrer estão lado a lado, aqui não existe a ética não violenta, como proposto por Butler, inspirada na filosofia de Lévinas. 
Israel sempre se defende com o discurso da “precisão” dos seus disparos contra palestinos. Precisão esta que tem ceifado vidas de crianças, mulheres, idosos e têm destruído escolas, hospitais, casas e espaços públicos. Não é difícil encontrar fotos de bairros todos destruídos. É preciso deter Israel e reverter décadas de violência, assim como reverter o confisco de terras e assentamentos ilegais de colonos israelenses, além de se contrapor a violência policial e militar voltada a solapar a vida de palestinos.
 
Uma criança ferida na fronteira de Gaza - 2018
 
A pergunta que devemos fazer é: por que choramos o Holocausto e não choramos a Nakba? Por que choramos mortes de judeus e não choramos mortes de palestinos? O que implica se compadecer de uns e abandonar outros? O direito ao luto bem como a dignidade humana não deve ser estabelecida com a supremacia de um grupo. Nossa tarefa enquanto militantes da causa Palestina é confrontar os netos do sionismo com a questão dos deslocamentos obrigatórios, expulsão de palestinos de suas terras, anexações indevidas de territórios e violências cotidianas. É preciso considerar que soluções individuais não trarão paz à Palestina, não restituirá sua terra, seu governo e sua soberania. É preciso uma retomada das questões da terra que permeiam significados simbólico, religioso, nacional, cultural e econômico.
 
Acordos de paz sempre mascararam a violência e nunca foram cumpridos. Talvez porque a humanidade, e principalmente a humanidade ocidental – estranha -, ainda não tenha notado o sofrimento de um povo. É preciso avançar nos estudos históricos e ver para além da Segunda Guerra Mundial, que trouxe sofrimento sim ao povo judeu e não deve ser esquecido, mas não podemos continuar cometendo o mesmo erro quando se trata dos palestinos, que morrem sem direito à defesa.
 
Israel conta com apoio dos EUA e até mesmo de países árabes, muitos silenciam a violência. Até quando o mundo vai escolher por quem chorar? Até quando o sofrimento de mães palestinas não serão motivo de revolta? Nosso mundo, seja ocidental ou oriental,  é cumplice de todas as violências e sofrimentos deste povo. Trata-se de uma limpeza étnica, que silenciamos, que não revelamos, que não publicizamos. Até quando continuaremos não compartilhando este luto? Até quando vamos relativizar o sofrimento de palestinos? Enquanto este sofrimento persiste, persistirá esta sociedade global, violenta, racista, misógina e colonialista. É preciso resistir, e resistiremos! Pelo direito ao luto de todos os povos, de todos os seres humanos sem distinção. Que o luto e a memória por Anne Frank, também seja o luto de Deena e de todas as crianças palestinas. Todas as vidas são precárias, mas umas são mais que outras. 
 

Francirosy Campos Barbosa Antropóloga, docente Associada ao Departamento de Psicologia da FFCLRP/USP, pós-doutora pela Universidade de Oxford, coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes.

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