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As mulheres na Palestina

Viagem à Palestina – agosto de 2019. Cisjordânia

Chegamos em Ramallah... finalmente! A sensação que nos toma é um misto de alegria e alívio.  Alívio de termos saído de toda aquela insalubre e sufocante atmosfera de repressão que se abate sobre os palestinos na velha cidade de Al-Quds (Jerusalém). E que pela primeira vez na vida sentimos de forma tão crua e direta sobre a nossa própria pele. Não éramos mais “brasileiros”, mas “filhos de árabes” cujos nomes nos identificavam como inimigos para a visão belicosa dos soldados israelenses que nos abordavam sucessivamente. Em Ramallah, estamos também longe de todas aquelas centenas de câmeras de vigilância permanente,  da presença ostensiva de militares sionistas, quase todos jovens com os olhos carregados de ódio em nossa direção,  da visão perturbadora de suas armas apontadas para nossas cabeças ou corpos,   das dezenas de pontos de controle militar em cada ruela do velho suq – acompanhando o trajeto e eternizando a famosa via sacra de Jesus para todos os palestinos – e não menos repugnante, das  propositais provocações sejam com os desfiles de sionistas civis armados ou das bandeiras do Estado de Israel colocadas sobre o Quarteirão islâmico da velha cidade sagrada.  Distantes também dos efeitos diretos e indiretos dessa opressão  sobre a população civil palestina que se torna compreensivelmente desconfiada e temerosa  diante da presença de estrangeiros e estranhos ao seu convívio diário, mesmo os com nomes árabes como os nossos.  Esse é um dos maiores crimes de um processo de colonização deste tipo, toda a vida cotidiana e seus laços interpessoais são afetados dramaticamente. Ao ver e sentir essas reações nos palestinos diante da nossa presença, estávamos naquele momento, somente eu e meu pai, ou seja, sem a presença de alguém local como o tio Khader (palestino), imagino que ocorreu neles algo do tipo: “O que esses estrangeiros querem? Será que falam a verdade sobre si? Não serão agentes do serviço secreto israelense se fazendo passarem por turistas ou simpatizantes da Causa Palestina para capturarem informações?”
 
É preciso ter clareza para entender que o processo de colonização não se apresenta de forma homogênea em toda a Palestina e, nem tampouco, é absorvido de forma igual pelos indivíduos. Existem locais onde a tensão e o conflito aberto são mais intensos e produzem distorções mais agudas sobre a  sociabilidade da população violentada, tornando tudo muito mais penoso... refletindo até mesmo nas nossas tentativas de comunicação. Isso é uma das muitas dores que carregamos dessa viagem – ter nosso encontro mediado direto ou indiretamente pela constante coerção sionista e seus efeitos. O leque das reações individuais a tais circunstâncias giram, fundamentalmente, em tornar os palestinos introspectivos ou desconfiados de tudo e todos, ainda que minoritariamente existam aquelas almas iluminadas capazes de serem amorosas com estranhos, mesmo nesses contextos de maiores hostilidades e agressividade. E agradecemos profundamente a esses últimos pelos momentos lindos que vivemos nesses locais.
 
Apesar dos pesares também existe espaço para alegria! Ramallah nos remete à lembrança das cenas de resistência  de Yasser Arafat na Muqata’a (seu quartel general) e da solidariedade à Causa Palestina visível naqueles dias. Dentre essas, recordamos com carinho a figura do nosso Mário Lill, companheiro do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) que representou naquele momento todos os brasileiros amigos do povo palestino ao entregar ao icônico líder árabe uma linda bandeira vermelha do MST. Arafat e seus próximos ficaram sitiados pelas forças de ocupação por 31 meses. Hoje, o Museu Yasser Arafat abriga intocado o espaço minúsculo em que esses lutadores resistiram àquela incursão assassina. As cenas de fotos e vídeos das ruas em resistência contra a invasão também nos povoam a imaginação. Alegria ademais, pois chegamos ao nosso acampamento base, o apartamento do tio Khader, que nos serviu durante toda a viagem como posto seguro, lugar de descanso, bons café e chá árabes... e muito debate.  
 
Alegria de ver as ruas centrais da cidade cheias de vida... mesmo sob penosas restrições a que esse povo vive há mais de setenta longos anos. Essa vida em contraste com a que vivenciamos em Al-Quds produziu em nós uma percepção embrionária e a esperança de como a Palestina deveria ser e será um dia... livre de toda a presença nefasta da colonização. O milagre dos palestinos também reside nisso: esse povo que sofreu e sofre uma das colonizações mais brutais da história contemporânea consegue majoritariamente sorrir, cantar, festejar seus casamentos, dançar,... em suma, viver com alegria e transformar toda a amargura que lhe é imposta em uma amorosa doçura similar a da tâmara de  Ariha (Jericó), do figo de Beit Ur al-Tahta ou da uva de Khalil (Hebron). O povo palestino é doce! Nem toda a amargura europeia do colonizador é capaz de desfazer tamanha doçura.
 
Em nossa primeira caminhada noturna, encontramos as ruas lotadas de pessoas, para nosso espanto.  Mulheres, idosos, crianças, jovens e homens circulam todos livremente pelas calçadas e fomos tomados por um gostoso sentimento de alegria por termos encontrado finalmente a Palestina.  As feições árabes, que nos são comuns e íntimas, emergiam vendo pessoas rindo,  se abraçando,  brincando, gritando no comércio... o que nos fez lembrar de outras cidades árabes do mundo e das nossas comunidades árabes no Brasil. 
 
Nesse pequeno giro pelas avenidas centrais, a nossa atenção é quase instantaneamente capturada pela presença majestosa da mulher palestina.  É como se as ruas fossem claramente dominadas por essa poderosa figura.  As vestes típicas islâmicas, que havíamos visto até então, eram mais de senhoras idosas com trajes pretos, mas agora as cores afloravam como primavera. A fascinação é tamanha que nossos olhos quase não enxergam homens, provavelmente hipnotizados por esse formoso desfile a céu aberto.  A imponência que surgia da combinação de cores entre as roupas, o lenço e o sub lenço, jeito de amarrá-los, os acessórios, as bolsas e os sapatos, os arranjos com as maquiagens faciais criam um festival de vida e transformam aquelas simples calçadas em verdadeiras fontes de identidade cultural.  Vestidos mais tradicionais, cobertos por bordados  em desenhos abstratos típicos da Palestina vestem mais comumente as senhoras de idade onde a cor preferida é mais sóbria, o que faz destacar os detalhes dos bordados.  As mulheres mais jovens preferem as cores mais vivas e criam associações que as destacam na multidão,  algumas mesclam suas roupas tradicionais com roupas ocidentais a seu próprio tipo, como a calça jeans. Tudo isso forma um arcabouço identitário fundamental dos palestinos ante ao  invasor estrangeiro que não passa de uma cópia de segunda qualidade do ocidente. 
 
Diferente da nossa cultura não vemos e ouvimos nenhuma forma de assédio às mulheres, pois tal ato é considerado desprezível na cultura árabe islâmica.  Essa relação de respeito permite, que em uma cidade grande como essa, ser possível ver mulheres andando nas ruas, às vezes com baixa luminosidade, sozinhas à noite, em plena liberdade e sem aparentemente temer nada.  Nossa vontade foi de fotografá-las, como forma de capturar essa beleza em imagem, porém ao fazê-lo vimos que elas reagiam escondendo os rostos e nervosas. Descobrimos de forma rápida que, culturalmente, não é respeitoso fotografar as mulheres desta forma. O que deixou visível que apesar de nossa tradição religiosa ser islâmica, não somos muito atentos a essas normas. Meio sem graça... digo ao interlocutor anônimo que me censura pelo gesto de fotografá-las que “não sabia”, e tento fazer uma pequena piada afirmando que eu faltara às aulas de religião na mesquita, a famosa madrassa. O que não ajudou a melhorar a minha situação com o rapaz em questão. 
 
Outra significativa diferença cultural é que não mostrar partes do corpo em público significa respeito a si  mesmo na tradição islâmica, ou seja, é uma afirmação que ressalta que o essencial na feminilidade não é dado pela beleza das curvas do corpo feminino exposta.  Essas mulheres possuem, nitidamente, uma força distinta daquela que conhecemos, não por menos possuem o maior grau de escolaridade entre os palestinos, que é um dos mais altos entre todos os árabes,  ocupam espaços chaves na política,  grandes figuras da resistência palestina são mulheres, incluso a icônica guerrilheira Leila Khaled. No campo religioso, temos Maria Alfonsina Danil Ghattas, criadora da Congregação das Irmãs Dominicanas do Santíssimo Rosário de Jerusalém e canonizada, em 2015, como santa palestina. Fátima Mohammed Bernawi foi a primeira guerrilheira palestina a planejar e executar um ato de resistência armada contra Israel, para os que não sabem era negra como é parcela da população Palestina. Nabiha Nasir feminista, defensora da unidade árabe e fundadora da mais importante universidade da Palestina (Universidade de Birzeit). Samiha al-Qubaj Salameh Khalil, conhecida simplesmente como Umm Khalil, fundadora da mais importante organização de caridade palestina e ativista política de relevo. A importante província de Ramallah é governada atualmente por uma mulher,  as combativas deputadas Khalida Jarrar e Abla Sa'adat são figuras de revelo da esquerda,  a incansável lutadora pelos direitos humanos Fadwa Barghouti é a mais importante referência de luta para a libertação dos presos políticos, todas são figuras públicas reconhecidas pelos palestinos e mundo afora.  As mulheres estão presentes nas Universidades, onde são majoritárias, são professoras e alunas, estão em organizações políticas, sindicais, na estrutura ainda que precária da Autoridade Palestina e da OLP.  Estão presentes na saúde como médicas e enfermeiras,  estão presentes no campo como camponesas,  estão presentes no comércio, etc. não existe espaços importantes na vida social palestina em que a mulher não esteja presente. Falar isso para um palestino é algo completamente banal, mas não o é para nós brasileiros bombardeados pela falsificação ideológica que vende os árabes como bárbaros (o que inclui serem machistas e as mulheres esteriotipadas de submissas / mero objeto), a fim de justificar tudo o que se faz com eles (invasões, guerras, etc.). Isso não significa negar que o patriarcado está presente nessas sociedades como um sistema de dominação, mas inicialmente para dizer que as sociedades árabes e islâmicas são muito distintas entre si. E afirmar, categoricamente, que a sociedade palestina é uma das mais avançadas nas condições da mulher no mundo árabe e islâmico em geral. Consequência direta da luta de libertação que alimentou a alma dessa sociedade com um teor muito maior do que somente uma luta anticolonial restrita.   
 
Não é menos significativa a figura da mãe na cultura árabe palestina. Em Ramallah, dias depois, vimos as mães saindo em protesto contra a prisão política de seus filhos.  Foi nos arredores desta mesma cidade que entrevistamos uma mãe palestina cujos cinco filhos são presos políticos nos cárceres de Israel e, que altivamente, nos disse em bom tom o quanto orgulha-se por cada um deles ter lutado para libertar a Palestina.  
 
A centralidade dessas mulheres como pilar da resistência política em suas famílias e, em toda a sociedade palestina, é indiscutível.  Elas me fazem lembrar as Oliveiras – plantas de raízes profundas que cortam essa terra, que é árida, mas que mesmo assim é capaz de se manter com um viçoso verde e de produzir sombra, azeitona, azeite, madeira e combustível para aquecer.  Nessa aridez resultante da violência do invasor sionista, as mulheres conseguem manter a beleza e produzir amor, força, coragem e solidariedade – como as Oliveiras, fontes de identidade e resistência desse povo. No poema Mulher palestina, que integra o livro Nosso verbo é lutar: Somos todos palestinos, escrevi essas linhas finais que sintetizam a generosidade e força dessas mulheres:
 
“(...)
Não houve um dia sequer
Em que
Não alimentasse nossas almas
Com sonhos generosos de liberdade
E nos ensinasse
Que só a luta fará vivê-los.
 
Seu lindo corpo
Carrega
Rugas – é verdade -,
Profundas cicatrizes,
Úteros grávidos,
Feridas abertas,
Juventude,
Rebeldia,
Infância,
Resistência.
Cada pedaço dele
É nossa história.
 
Não houve um dia sequer
Em que
Não sentíssemos sua firme presença.
 
Um dia sequer
Em que
Não necessitássemos intensamente
De você – mulher palestina.”
 
 
Autores: Yasser Jamil Fayad, Jamil Abdalla Fayad e Khader Othman.
 
Foto nas ruas de Hebron

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