Quinta Feira, 10 Outubro 2024

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A violência em face do sagrado, escreve Girrad Mahmoud Sammour

Mundo vê ataques a direitos humanos, liberdade de religião é valor essencial, restringir acesso é uma violação grave, leis internacionais têm de ser seguidas

O mundo tem presenciado nos últimos dias mais do que cenas de terror. São cenas de ataques a todos os princípios e valores que norteiam os direitos humanos.

Os episódios ocorridos na invasão da Mesquita Al-Aqsa por forças israelenses em pleno mês de Ramadan –mês abençoado para os muçulmanos, sendo estes agredidos e alvejados enquanto oravam– violam diretamente o direito universal da liberdade religiosa e ferem a dignidade da pessoa humana, as leis internacionais que asseguram o respeito ao sagrado, à livre manifestação de crença e culto, entre outros.

A liberdade de religião ou crença assegura essencialmente a liberdade de manifestar sua religião e a liberdade de culto e prática dela. É determinada não só pelos ordenamentos jurídicos nacionais, mas também pelo ordenamento internacional. Nessa seara, a resolução da ONU nº 181, que corriqueiramente vem sendo desrespeitada, assim dispõe:

“Capítulo I: Lugares santos, prédios e sítios religiosos

  1. Direitos vigentes a respeito dos lugares santos e prédios e sítios religiosos não serão negados nem dificultados.
  2. Sempre que se tratar de lugares santos, a liberdade de acesso à visita e trânsito será garantida, de conformidade com os direitos vigentes a todos os residentes e cidadãos do outro Estado e da Cidade de Jerusalém, bem como aos estrangeiros, sem distinção de nacionalidade. Do mesmo a liberdade de culto será garantida, segundo os direitos vigentes, respeitadas as exigências de ordem pública e decoro.
  1. Os lugares santos e os sítios e prédios religiosos serão preservados. Não será permitida qualquer ação que possa de algum modo afetar seu caráter sagrado.
  1. Nenhuma taxa será cobrada concernente a qualquer lugar santo, prédio ou sítio religioso que estava isento de taxa na data da criação do Estado.
  1. O governo da cidade de Jerusalém terá o direito de determinar se as disposições da constituição do Estado com relação aos lugares santos, prédio e sítios religiosos dentro das fronteiras do Estado e os direitos religiosos pertinentes estão sendo bem aplicados e respeitados, e de tomar decisões com base nos direitos vigentes em casos de disputas que possam surgir entre as diferentes comunidades religiosas sobre tais lugares. 

Capítulo 2. Direitos religiosos e das minorias

  1. Serão garantidos a todos a liberdade de consciência e o livre exercício de todas as formas de culto, sujeitos somente a exigência de ordem pública e dos costumes.
  1. Nenhum tipo de discriminação será admitida entre os habitantes com base em raça, religião, língua ou sexo. 
  1. Todas as pessoas dentro da jurisdição do Estado serão protegidas de igual forma pelas leis. 
  1. O direito de família e o status pessoal das várias minorias e seus interesses religiosos, incluindo doações serão respeitados.

Ainda, nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (resolução 217 A 3) de 10 de dezembro 1948, estabelece a liberdade de religião ou crença, bem como a liberdade de circulação, conforme refletido pelo princípio da não discriminação e descrito nos artigos que colacionamos abaixo:

“Artigo 2

  1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

[…]

Artigo 18

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.”

Já o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), que foi assinado por Israel, em vigor desde 3 de janeiro de 1992, dispõe que nenhuma medida pode violar a liberdade religiosa, até mesmo a defesa da segurança nacional, frequentemente levantada como uma justificativa, senão vejamos:

“Artigo 4º

  1. Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente, os Estados Partes do presente Pacto podem adotar, na estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as obrigações decorrentes do presente Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional e não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social.
  1. A disposição precedente não autoriza qualquer suspensão dos artigos 6, 7, 8 (parágrafos 1 e 2) 11, 15, 16, e 18.

Artigo 5º

  1. Nenhuma disposição do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhe limitações mais amplas do que aquelas nele previstas.
  1. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte do presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau.”

Ocorre que mesmo antes da invasão, de 1993 e até o presente momento, adotou-se um sistema institucionalizado, pelas autoridades israelenses, que deveria incluir autorizações, postos de controle e barreiras, para muçulmanos e cristãos que freqüentam os cultos na mesquita de Al-Aqsa ou na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém e em outros templos religiosos, entretanto, estes têm sido impedidos de acessar locais sagrados para adoração, indo de encontro assim a todas as normas e legislações internacionais que regem o tema.

É bom mencionar que a Quarta Convenção de Genebra estabelece que as pessoas protegidas tenham direito, em todas as circunstâncias, ao respeito por suas convicções e práticas religiosas e seus modos e costumes, disposto em seu artigo 27:

“As pessoas protegidas têm direito, em todas as circunstâncias, ao respeito da sua pessoa, da sua honra, dos seus direitos de família, das suas convicções e práticas religiosas, dos seus hábitos e costumes. Serão tratadas, sempre, com humanidade e protegidas especialmente contra todos os atos de violência ou de intimidação, contra os insultos e a curiosidade pública.

As mulheres serão especialmente protegidas contra qualquer ataque à sua honra, e particularmente contra violação, prostituição forçadas ou qualquer forma de atentado ao seu pudor.  

Sem prejuízo das disposições relativas ao seu estado de saúde, idade e sexo, todas as pessoas protegidas serão tratadas pela Parte no conflito em poder de quem se encontrem com a mesma consideração, sem qualquer distinção desfavorável, especialmente de raça, religião ou opiniões políticas.

Contudo, as Partes no conflito poderão tomar, a respeito das pessoas protegidas, as medidas de fiscalização ou de segurança que sejam necessárias devido à guerra.”

Não menos importante, o Direito Internacional Consuetudinário da Cruz Vermelha (CICV) estabelece que:

“O ocupante é obrigado a permitir a liberdade de religião no território ocupado. Essas proteções incluem explicitamente a liberdade de religião por meio de observâncias, serviços e ritos religiosos.”

Essas medidas sistêmicas e discriminatórias que visam a restringir o acesso físico das minorias religiosas a locais religiosos, assim como sua invasão, violaram substancialmente a liberdade destas de manifestar sua convicção religiosa e a liberdade de culto.

O acesso restrito de muçulmanos e cristãos palestinos a locais religiosos continua a representar uma grave violação de suas liberdades de crença, observâncias, serviços e culto.

O desrespeito ao sagrado e a violação de leis internacionais acima citadas demonstra é um risco eminente a todos, pois do mesmo modo que uma mesquita é invadida, uma Igreja ou Sinagoga amanhã o poderão ser.

Quando qualquer crença é violada, torna-se assim vulnerável a legitimidade da inviolabilidade a liberdade religiosa, cabendo às autoridades e pessoas de bem, repudiar tais atos, para que se chegue à comunidade internacional, cessando tais arbitrariedades e abusos, pois toda a humanidade perde quando se fecham os olhospara tais atos.

Nas palavras do ministro Celso de Mello, ex-decano do STF“se mostra imperioso proclamar que nenhum Poder da República tem legitimidade para desrespeitar a Constituição ou para ferir direitos públicos e privados de quaisquer pessoas, eis que, na fórmula política do regime democrático, nenhum dos Poderes da República é imune ao império das leis e à forma hierárquica da Constituição. Quem tem o poder e a força do Estado em suas mãos não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República”.

Neste sentido, a Associação Nacional de Juristas Islâmicos (Anaji) vem exercendo papel fundamental de diálogo, informação, se levantando contra e repudiando quaisquer atos de intolerância, seja em relação a muçulmanos, cristãos, judeus, ou a qualquer pessoa que tenha ferida a sua dignidade e liberdade individual de crença.

O artigo 5º da a Carta de 1988 estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. A Constituição de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional.

Cabe a nós, brasileiros, e a nosso governo não apoiarmos quaisquer atos de injustiça ao sagrado, diante da premissa que nossa Constituição garante a liberdade religiosa, e, acima de tudo, por ser o Brasil um signatário das leis e tratados internacionais. Quando estes violados, são passiveis de crime de responsabilidade.

 

Girrad Mahmoud Sammour é advogado, pós graduado em processo civil, presidente da Associação Nacional de Juristas Islamicos (Anaji), da Comissão de Intolerância Religiosa da OAB-Barretos, da mesquita de Barretos (SP) e professor divulgador do Instituto Latino Americano de Estudos Islâmicos (Ilaei)

 

Foto: Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém

Fonte: Poder 360

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