Bolsonaro, Netanyahu e o sionismo na cadeira do Planalto
Segundo Netanyahu, Bolsonaro lhe assegurou que a transferência da embaixada não é uma questão de “se” será feita, mas “quando"
Em posse marcada pelo viés ideológico que Bolsonaro diz combater, no dia 1º de janeiro, em Brasília, uma presença foi especialmente saudada pelo capitão reformado do Exército alçado a Presidente da República: a do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu. A visita representa importante gesto na direção anunciada ao apagar das luzes de 2018 na página da Embaixada de Israel no Brasil, em mensagem assinada pelo seu representante, Yossi Shelley: “O Estado de Israel se associa ao novo governo buscando estreitar, ainda mais, os fortes laços de amizade e cooperação, que fazem do Brasil um parceiro de grande importância estratégica.” Mas nem tudo foram flores em sua visita, como a mídia em geral fez transparecer. Não faltaram manifestações de repúdio nas redes sociais e mesmo de pessoas comuns que transitavam pela orla carioca. Em meio a passeio de Netanyahu em 29 de dezembro último, ouviu-se o bradar “Free Palestine [Palestina livre]!”.
O Rio de Janeiro foi o ponto de partida. Ali Netanyahu chegou no dia 27 para uma primeira reunião bilateral com Bolsonaro e encontro com representantes da comunidade judaica. Antes, segundo o portal Notícias de Israel, assegurou a intenção de levar a cabo “uma revolução” nas relações com o Brasil. E pontuou: “É um país com quase um quarto de bilhão de pessoas, uma superpotência. E estão mudando suas relações com Israel de um extremo a outro, incluído o tema de Jerusalém.”
Há pouco mais de um ano, em setembro de 2017, de olho no mercado potencial, o premiê fez um giro pela América Latina, que incluiu Argentina, Colômbia e México – não sem enfrentar protestos por simbolizar o regime institucionalizado de apartheid e a ocupação criminosa a que estão submetidos os palestinos cotidianamente. O Brasil ficou de fora naquela ocasião.
Essa foi sua visita inaugural ao país – e a primeira de um primeiro-ministro israelense desde a Nakba (em árabe, catástrofe, o que representa para os palestinos a criação unilateral do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada, como demonstra o historiador israelense Ilan Pappé).
Coerente. Afinal, Bolsonaro declara aos quatro ventos seu amor por Israel e anuncia medidas que representam a adesão plena do Brasil ao projeto colonial sionista: afora o gesto de transferir a Embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, promete mais acordos com Israel. Além de explicitar o papel subalterno do Brasil na ordem econômica internacional, representa aprofundamento – sem máscaras – da cumplicidade histórica com o Estado sionista, que se dá desde 1947.
Naquele ano, em 29 de novembro, o diplomata brasileiro Osvaldo Aranha presidiu a Assembleia Geral das Nações Unidas que recomendou a partilha da Palestina em um estado judeu e um árabe, o que representou sinal verde à limpeza étnica subsequente. Osvaldo Aranha tinha a orientação à época de se pronunciar favoràvel à resolução, seguindo o voto da potência emergente pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos – e o fez. Ademais, nos últimos 15 anos, do ponto de vista econômico – base para a sustentação da ocupação –, o Brasil assumiu trágica posição entre os cinco maiores importadores de tecnologia militar israelense.
Aliados de peso
A promessa de transferência da Embaixada que tanto anima Netanyahu foi feita ainda durante campanha eleitoral por Bolsonaro, à qual contou com ajuda de aliados de peso: além de empresários, as principais lideranças evangélicas – assim como ocorreu com Donald Trump nos Estados Unidos –, que vêm disseminando nos templos o que se denomina “sionismo cristão”: a ideia de que Israel é a terra prometida e seu povo judeu, escolhido por Deus. Um revival das representações bíblicas já desmontadas historicamente utilizadas pelo movimento sionista para justificar a colonização na Palestina ainda em seus primórdios. Num cenário de crise em que cresce o número de fiéis em busca de alento às mazelas cotidianas (hoje, estima-se que cerca de 30% da população brasileira seja evangélica), o resultado dessa pregação é que, como chegou a afirmar Bolsonaro em entrevista ao SBT no dia 3 de janeiro, “grande parte dos evangélicos são favoráveis à mudança da capital”. Em entrevista à BBC no dia 9, Magno Paganelli, especialista em turismo pentecostal em Israel, ressaltou que “essa atenção a tudo quanto envolva Israel é mais pronunciada entre as igrejas que chamamos neopentecostais, surgidas desde o final da década de 1970”. A conexão com o sionismo é evidente.
Em reportagem do El País de 30 de outubro último, a pesquisadora norte-americana Amy Erica Smith ensina que o envolvimento com a política desse grupo data dos anos 1980 e se aprofunda: “Os evangélicos achavam que as políticas públicas do Estado brasileiro estavam prejudicando sua capacidade para evangelizar. Queriam chegar ao poder para obter coisas como licenças para rádio.” A mobilização culminou com ampliação da bancada evangélica no Congresso Nacional de 78 para 91 parlamentares, de acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Esse setor promete pressionar Bolsonaro a cumprir sua promessa.
Risco de retaliações
Logo após o resultado das eleições, Bolsonaro confirmou a transferência em entrevista ao jornal Israel Hayom. Desde então, o tema permanece em disputa. Um primeiro recuo de Bolsonaro se deu em 6 de novembro, diante da posição do Egito de adiar visita oficial brasileira ao país árabe, quando ele chegou a afirmar que “essa não é uma questão de honra” – para dias depois voltar a usar o twitter para expressar que não desistira de sua pretensão original. Mais recentemente, aconselhado pela ala militar de seu futuro governo de que essa ação teria implicações e precisaria ser feita de forma paulatina, declarou que estabeleceria não uma Embaixada em Jerusalém, mas um escritório de representação. Em sua visita, contudo, Netanyahu deu como certa a mudança em entrevistas que concedeu. Segundo ele, Bolsonaro lhe assegurou que a questão não é “se” será feita, mas “quando”.
O tema ganha condenação mundial, não só entre defensores de direitos humanos, mas inclusive junto ao meio empresarial, de olho nos seus negócios. Manifestações contrárias abrangem da Liga Árabe à Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, que vem apontando risco de retaliações para comércio por parte de países árabes com a medida. A diretoria desta última reuniu-se com o vice-presidente Hamilton Mourão em 18 de dezembro último, ocasião em que lhe entregou, conforme sua agência de notícias (Anba), um estudo “sobre o potencial de crescimento das relações do Brasil com os países árabes, especialmente nas áreas de comércio e investimentos”. O documento aponta, por exemplo, que as exportações brasileiras à região – que somaram US$ 13,6 bilhões em 2017 – “podem chegar a US$ 20 bilhões até 2022, último ano do governo que tomará posse em 1º de janeiro de 2019, e que o fortalecimento dos negócios bilaterais tem condições de gerar 300 mil empregos no mesmo período”. “Nós temos a preocupação de não criar ruídos nas relações [com os países árabes], com algo que poderia impedir a realização deste potencial [de negócios]”, declarou o presidente da Câmara, Rubens Hannun, no ensejo.
Os países árabes são hoje o quinto principal destino de exportações brasileiras. Maior produtor e exportador mundial de carne bovina e segundo maior de frangos, o Brasil é também líder nas vendas de carne halal (cuja técnica para abate segue preceitos islâmicos). A informação é de que a exportação para países de maioria islâmica atinge 2 milhões de toneladas/ano, volume com potencial de crescimento estimado em 60% nos próximos anos, de acordo com a mídia. Segundo reportagem publicada o jornal O Estado de S. Paulo de 2 de novembro último, os países árabes “ensaiam também sua entrada no financiamento a investimentos em infraestrutura do País. Produtores de petróleo, eles concentram 40% dos recursos de todos os fundos soberanos do mundo”.
A seguir os passos dados há cerca de um ano por Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, Bolsonaro irá na contramão da maioria dos países em relação ao reconhecimento até mesmo dos mínimos direitos palestinos. A medida ignora as recomendações da própria Organização das Nações Unidas (ONU), que deixam claro que nenhuma Embaixada pode se estabelecer em Jerusalém enquanto não houver definição sobre o estatuto da cidade – o que, para a ONU, deve ser resolvido via negociações, e não unilateralmente por iniciativa dos Estados Unidos e de Israel. O contrário do que afirma Bolsonaro, portanto, para justificar sua intenção.
ndependentemente da solução defendida para a questão palestina e caminhos, não há dúvidas de que a transferência da Embaixada brasileira afronta o direito à autodeterminação dos palestinos, que vivem sob ocupação ilegal, além de desconsiderar os próprios interesses econômicos do Brasil.
Por outro lado, Bolsonaro antecipou ainda que, sob seu comando, mais acordos serão feitos com Israel. Como demonstram estudos divulgados pelo movimento BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel, a militarização às custas de vidas palestinas serve ao genocídio sobretudo de indígenas e negros nas periferias brasileiras. Enquanto isso, novas armas para fins de exportação continuam a ser testadas em massacres de palestinos sobretudo em Gaza – e a colonização israelense segue a todo vapor.
Diante inclusive da possibilidade de criminalização de refugiados, imigrantes, ativistas – na esteira da tentativa do Congresso e governo de alterar a lei antiterrorismo para silenciar e reprimir os movimentos sociais e qualquer voz dissonante –, o chamado que tem sido feito pelos defensores dos direitos dos palestinos é por unificar o repúdio a ações como essas sobretudo na América Latina e fortalecer em toda a região a campanha de BDS a Israel, que contempla, entre as demandas fundamentais do povo palestino, o retorno dos milhões de refugiados às terras de onde foram e continuam a ser expulsos.
Source: Carta Capital
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