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Branquear, salvar e nacionalizar: Israel na nova estética da política brasileira

por Rodrigo Toniol

21 de outubro de 2018. Aquele era o domingo que antecedia o fim de semana do segundo turno das eleições presidenciais no Brasil. Na Avenida Paulista estava programado o último dos grandes atos de manifestação em prol da campanha de Jair Bolsonaro. Por razões nada eleitorais, no entanto, eu também estava indo para a Paulista. A urgência era alcançar o último dia da magnífica exposição Histórias Afro-atlânticas, no MASP. No trajeto da minha casa para a exposição uma multidão vestida de verde e amarelo ocupava as ruas e cantava repetidamente o hino nacional, entusiasmada com uma vitória que já se desenhava. Mas, foi apenas quando cheguei ao museu e subi o primeiro lance de escadas que pude dimensionar o tamanho da manifestação. Ao meu lado, também mirando a multidão, estava Bruno Torturra, o jornalista idealizador do Mídia Ninja e um dos protagonistas das manifestações de junho de 2013, quando aquela mesma avenida fora ocupada por protestos contra o aumento da passagem de ônibus. A dramaticidade da situação aumentou quando na nossa frente estacionou o carro de som, que servia como palanque para João Dória, que bradava “Agora é BolsoDória”, ao lado de jovens do MBL, que quatro anos antes iniciaram as mobilizações que culminaram com o impeachment de Dilma Rousseff. Como esperado, ali não faltavam bandeiras do Brasil; o que surpreendia, no entanto, era o grande número de bandeiras de Israel.

No intervalo entre 2013 e 2018, a política brasileira passara por um verdadeiro tsunami e esse eram alguns de seus personagens incontornáveis, inclusive aquele que, ao meu lado, agora ocupava a posição de espectador. Diante do que víamos, falamos pouco, mas uma ideia reinava: a avenida era a mesma, muitas das pessoas que a ocupavam também, mas a estética da cena era completamente outra.

As referências à obra do filósofo Jacques Rancière têm se tornado cada vez mais comum nas análises e comentários sobre a política no Brasil. Aqui, quero me valer de sua noção de “partilha do sensível”. Um conceito que descreve o processo de formação de comunidades políticas. No fundo, a lição de Rancière é que a política é essencialmente estética. É a estética dos discursos, das formas, dos símbolos, das cores, dos corpos que engaja as pessoas e os grupos. A estética não é a superfície ou o simples reflexo do conteúdo, mas é ela própria que mobiliza e produz os coletivos políticos. No conceito de partilha do sensível, partilha tem dois sentidos. De um lado, a partilha está associada àquilo que é comum, compartilhado. De outro, àquilo que divide, que particiona. Uma partilha do sensível, portanto, é algo que produz um coletivo e, ao mesmo, o que demarca suas fronteiras.

Jacques Rancière

Muita tinta já foi gasta para tentar compreender a transformação da política brasileira nesta última década, mas a estética desse processo parece ainda não ter rendido tudo o que pode. Urge decompor a partilha do sensível dessa comunidade política que se tornou majoritária no país. Entre tantos fios possíveis, um que me parece tão inusitado quanto relevante é justamente o uso ostensivo da bandeira de Israel por parte de candidatos alinhados com a onda conservadora e por seus apoiadores. A presença concreta da bandeira nessas manifestações e protestos também invadiu o ambiente virtual e se espalhou pelo TwitterFacebook e Instagram como ícone de identificação nos perfis de usuários “da direita” no espectro político.

O que explica a relevância estético-política que a referência a Israel adquiriu em um país em que apenas 0,056% da população se reconhece como judeu?

O uso desse ícone por parte da nova onda conservadora no Brasil está relacionado a três dimensões. A um só tempo, elas demonstram a heterogeneidade das razões pelas quais essa estética tem emergido e também confirmam a convergência estética do grupo que tem se estabelecido em torno dela.

Primeiro, o branqueamento. O que a referência a Israel pode fazer com quem  reivindica aquele país do Oriente Médio como parte de seu horizonte político? Branquear. A classe média emergente, que teve incremento de renda nas últimas décadas, mas ainda assalariada, tem como modelo as elites oligárquicas brasileiras. Não seria nenhum arroubo sociológico dizer que, no Brasil, a revolução burguesa nunca foi completada, de modo que a ascensão de classe é acompanhada por um afunilamento de identidades e do repertório de experiências possíveis de serem reivindicadas por parte desses sujeitos. O apelo a Israel é um atalho para as classes médias ascendentes se conectarem com o modelo de elite desejado.

Segundo, o neopentecostalismo. Ingrediente fundamental da política brasileira do século XXI, a aproximação de grupos evangélicos com Israel não é recente. No entanto, foi somente nas últimas décadas que as referências teológicas àquele território adquiriram ares explicitamente políticos. O ponto culminante deste processo é justamente a construção do Templo de Salomão, nova sede da Igreja Universal do Reino de Deus, construída com pedras vindas diretamente de Israel, onde alguns cultos ocorrem em hebraico com pastores usando quipá. Dois aspectos precisam ser retidos deste fenômeno de aproximação entre o pentecostalismo e Israel. Primeiro, teologicamente, a construção de um novo templo de Salomão, o terceiro da história, marcaria o início do retorno do messias e do fim dos tempos. Desse modo, ao completar seu projeto de construção do templo, a Igreja Universal produziu uma conexão simbólica entre o Brasil e Israel, inscrevendo o país na história do cristianismo, transformando-o em um território eleito, onde a profecia será cumprida. E, segundo, entre tantas outras possibilidades de referências teológicas, optou-se pela reconstrução do Templo de Salomão. Foi a um rei, e não a um profeta, como bem poderia ser, que a Universal apelou. O que está em jogo com isso é a referência a uma teologia política do domínio, uma teologia do templo, um projeto de territorialização do sagrado levado à cabo pelo neopentecostalismo da Universal. Um tipo de pentecostalismo que não somente autoriza que o religioso fale sobre política, como traz a política para o interior do templo.

Templo de Salomão (Wikimedia Commons)

As referências a Israel nas manifestações da nova onda conservadora ecoam no horizonte teológico do neopentecostalismo brasileiro. Um tipo de pentecostalismo cuja aproximação com a política passa pela relação teológica com Israel. Disso parece derivar um elemento fundamental da nova política, a emergência de um novo tipo de messianismo, que nos faz perguntar: estaria nossa política brasileira deixando de ser Sebastianista e passando a ser Salomônica?

Terceiro, o nacionalismo. A referência política a Israel também se alinha com um tipo de nacionalismo no qual a construção de um projeto de futuro é tão relevante quanto a  tradição do passado. É um nacionalismo que se estabelece a partir da convicção de que trata-se de um povo eleito, mas ainda com uma missão a ser completada. Institui-se, assim, uma complexa trama em que a política terrena é o meio para a realização de um plano transcendente, inescapável por um lado, mas exigente por outro. Surge daí o nacionalismo de uma nação do futuro.

Branquear, salvar e nacionalizar. Esses são alguns dos efeitos das referências a Israel na estética do novo conservadorismo brasileiro. Como qualquer modelo estético-político, diante dele, não importa alegar que essa imagem é apenas uma fantasia ilusória a respeito do que seja o verdadeiro Israel. Por isso, diante do desejo do branqueamento a partir do alinhamento com essa estética não cabe contra-argumentar lembrando dos judeus etíopes, tampouco demonstrar que há judaísmo progressista ou explicitar que a ideia de predestinação pode comprometer o diálogo político.

Neste momento, um dos passos necessário é reconhecer que Israel tem se tornado um elemento chave de mediação estética do novo conservadorismo, e que as razões para acionar essas imaginações sobre Israel são heterogêneas, mas nem por isso aleatórias e dispersas.

(Foto: REUTERS/Ammar Awad)

Rodrigo Toniol é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp

 

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