Sábado, 12 Outubro 2024

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Coabitáveis

O conto “Coabitáveis” faz parte de seu livro Culpa, recém-lançado

Por Caco Ishak

 

Ninguém no quarto. A energia oscila, a TV liga sozinha. Palestino é morto com um tiro na cabeça perto da aldeia de Beit Dajan após manifestantes atirarem pedras contra soldados sionistas. Al-Durrah fecha o chuveiro, enrola-se na toalha, sai do banheiro e cata o controle na cama. Hesita diante da imagem de um idoso sendo escoltado por um dos recrutas amontoados ao redor, retido pelo braço que se apoia em uma bengala de madeira rústica. Mão livre ao alto, palavras de ordem reivindicando brio à barba branca. Al-Durrah desliga a TV, joga o controle de volta no colchão. Sobre a cômoda, o rádio bidirecional assume o protagonismo.

Al-Durrah na escuta, Meyer lhe informa que foram descobertos. Que deixassem o esconderijo de imediato, ele e Saeb, pois um homem de Kochavi estava a caminho. Que se encontrassem no local combinado.

Atropelando a fala do companheiro, al-Durrah rebate: Saeb havia saído para comprar a janta. Caso saísse agora, bem provável um desencontro, e Saeb acabaria capturado.

Tom de voz cabal, Meyer lhe diz para deixar um bilhete. Não há caneta, retruca al-Durrah no mesmo tom.

Segue-se nada além do confronto entre fôlegos.

Meyer então quebra o cessar-fogo e orienta que al-Durrah o espere, não havia tempo a perder, melhor seria se passasse lá de uma vez e os três seguissem juntos rumo ao quartel-general da UNRWA. Al-Durrah vacila, concorda e supõe que Saeb não se demoraria, que Meyer se apressasse também. O confrade salienta já estar no carro. Câmbio final.

Rádio à cômoda, al-Durrah mira pelo vão da porta seu reflexo no espelho do banheiro. Desata o nó, deixa a toalha deslizar pelas pernas. Observa a cicatriz na coxa esquerda pela qual sua vida quase se esvaiu aos quatro anos de idade, ainda em Beirute, quando a sede da OLP foi bombardeada por um avião israelense. Paz na Galileia, disse o açougueiro Sharon. Mais de onze mil mortos. Sionistas de um lado, falangistas cristãos do outro. A imagem de sua mãe sendo estuprada e em seguida mutilada em Chatila diante dos cadáveres de suas irmãs mais velhas. A imagem que, embora não presenciada, tornou-se memória de infância do tanto que foi contada e recontada pelo pai, sempre no mesmo tom de voz carregado de culpa por não estar presente para defendê-las. Como se possível. Foi o pai quem o salvou da morte, duas vezes. Ao deixar Chatila, levando o filho consigo em um comboio de líderes refugiados, e ao estancar o sangue que jorrava de sua perna atingida por um estilhaço. Tomou ciência do massacre por meio do médico libanês que lhes deu guarida em Trípoli, quando a perna de al-Durrah enfim se encontrava recuperada o suficiente, exatos dois meses depois, para que pudesse caminhar de volta aos braços da mãe. A cicatriz distendeu com os ossos. Seu Nabka particular.

A imagem do tapa-olho de Moshe Dayan, esta sim bem vívida na memória. A imagem grudada no armário do abrigo, recorte antigo de revista que fazia as vezes de alvo no jogo de dardos entre o pai e os refugiados, em sua maioria sobreviventes da Guerra dos Seis Dias. Seis anos perfurando o mesmo tapa-olho até retornarem à Palestina por um dos tantos túneis escavados no subsolo. Cegueira voluntária, necessária à recondução de crianças, mulheres e homens ao sol. Era como estar preso no próprio túmulo, lembra-se do pai murmurando. Levou o recorte consigo, dobrado no bolso. Mesmo recorte ora grudado no guarda-roupa do esconderijo. Al-Durrah abre a porta, tira uma camisa do cabide, um par de calças. Veste os braços e devagar abotoa-se até o pescoço. Fecha a porta. O fantasma de Moshe Dayan o encara. O fantasma de Yasser Arafat. O fantasma do pai soterrado vivo durante a ocupação de Israel, sete anos antes. Da casa demolida, onde sobreviveram por duas décadas de resistência, pôde levar tão somente os retratos dos três. Seu Nabka particular.

Indisposto, al-Durrah senta-se na cama, fita a arma sobre a mesa de cabeceira ao lado de uma edição de janeiro do Yediot Ahronot e passa a vestir as calças. Não somos uma ameaça existencial, diz em voz alta, parafraseando Gadi Eisenkot em artigo sobre a política externa vigente de Israel. O antecessor em nada lembrava o atual chefe das Forças de Defesa, Aviv Kochavi. Não somos uma ameaça existencial, repete a si mesmo. Não somos uma ameaça existencial. Não somos. Aquilo, todavia, tinha de parar. E enfim recebia o devido apoio internacional. Meyer logo chegaria. Saeb logo chegaria. E os três, juntos, partiriam rumo ao quartel-general da UNRWA. Kochavi e seus homens, seu homem, nada poderiam fazer para impedi-los. A coabitação é possível. A pluralização é possível. Não há escolha. Não somos uma ameaça existencial.

A pressão contra os palestinos para que a cooperação com as investigações do TPI cessassem era em vão. Não cessariam. Novos crimes cometidos na tentativa de silenciar as testemunhas de crimes históricos, de um holocausto progressivo, eram em vão. Não silenciariam. Não no que dependesse dele.

Pega a arma da mesa de cabeceira. Levanta-se. Enfia a arma na cintura. Novo levante a caminho. Mais um. Está preparado. Sempre esteve. A energia oscila.

Batem à porta.

 

Caco Ishak é jornalista, escritor e mestre em Epistemologia da Comunicação pela USP.

 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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