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Covid-19 e o regime de apartheid na Palestina

Por Fátima Ali, Muna Odeh, Cristianne Rocha e Vinicius Cannavo

Durante décadas, a ocupação da Palestina causou milhares de mortes e milhões de refugiados palestinos, transformando a região do Oriente Médio em uma zona de conflito constante. No início do século XX, o sionismo se espalhou pela Europa tendo como objetivo principal a criação de um Estado judeu, pouco importando onde, e tendo como ápice os conhecidos crimes havidos, em solo europeu, quando da 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Importante destacar que o sionismo é anterior à ascensão do nazismo, logo ele não é, historicamente, a razão para os euro-judeus terem ideado a construção de um estado somente para si, embora esta confusão seja recorrente e proposital de parte da narrativa oficial israelense hoje.

Por outro lado, mesmo décadas antes da autoproclamação do Estado de Israel, ocorrida em 14 de maio 1948, já haviam iniciado algumas movimentações sionistas para a implantação do regime do apartheid na Palestina histórica, bem como os horrores da limpeza étnica perpetrados contra a população autóctone.

Curioso notar que ao mesmo tempo que em a Palestina era objeto dos arranjos secretos coloniais (1916 aos acordos secretos entre Inglaterra e França, conhecidos como Sykes-Picot, e em dezembro de 1917 a Declaração Balfour, em que a Inglaterra promete a Palestina aos euro-judeus), o mundo é assolado pela chamada gripe espanhola, que vai de 1918 a 1920 e faz ao redor de 50 milhões de vítimas fatais.

Pouco mais de um século se passou, tanto dos projetos iniciais contra a Palestina quando da gripe espanhola e, no ano de 2020, o mundo é surpreendido com uma nova pandemia, provocada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), e a doença por ele provocada, a Covid-19. Há mais de 72 anos os palestinos são submetidos à invasão militar israelense, que se aproveita da crise sanitária e fortalece sua prática de violação aos direitos humanos, fazendo recrudescer, em meio à emergência em saúde pública, sua rotineira política de segregação, de limpeza étnica e de ocupação (CARAMURU TELES, 2020).

A limpeza étnica é a expulsão e assassinato em massa de um determinado grupo étnico indesejado na região, fazendo parte uma tática política de colonização. Esse é um processo inerente à formação do Estado do Israel (PAPPÉ, 2016). Inclusive, 530 vilas palestinas foram destruídas em 1948, criando um grupo gigantesco de refugiados. Estima-se que na época cerca de 750 mil palestinos abandonaram as suas casas (PAPPÉ, 2016). Para se garantir como Estado étnico, Israel não pode perder a maioria étnica na região, acarretando em políticas de controle populacional militarizado, políticas públicas de migração de judeus para Israel e, neste momento, a forma como vem combatendo a pandemia causada pelo novo coronavírus.

As tensões entre palestinos e israelenses têm se traduzido de inúmeras formas durante o último século. Hoje, a política de vacinação é mais um marcador de segregação e higienização étnica. Segundo Mustafa Barghouti, dirigente partidário da Iniciativa Nacional Palestina, em entrevista (SODRÉ, 2021), a “postura de Israel em meio à pandemia dá continuidade a uma política de discriminação histórica”. O mundo atual vivencia as desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais, diante da pandemia, mas a Palestina vive, ainda por cima, uma situação mais cruel e severa nesse momento.

Apesar de Israel estar sendo parabenizado pelo êxito na campanha de vacinação contra a Covid-19, por se tratar do país que mais vacinou, proporcionalmente, a sua população, quando o assunto são os palestinos, a política implementada pelo Estado israelense é outra (SODRÉ, 2021). Vale ressaltar que, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), até a data de 16 de fevereiro de 2021, temos 108.684.743 de casos confirmados de Covid-19 no mundo e 2.399.103 de óbitos. Conforme a Ministra da Saúde da Autoridade Nacional Palestina, Mai Al-Kailah, a pandemia já fez 2.133 vítimas fatais na Palestina e temos registrados, oficialmente, 190.316 de casos contaminados. A Palestina vive a desolação da crise sanitária acompanhada pela política do regime do apartheid de Israel, que representa uma catástrofe sem fim.

A Palestina é hoje um mosaico fragmentado, no qual os crimes são cometidos, mesmo diante de apelos da comunidade internacional para que as convenções sejam cumpridas. Desde o final de 2020, os países iniciaram a vacinação contra a COVID-19, necessário para mudanças no atual cenário epidemiológico. Israel, entretanto, recusa-se a vacinar a população palestina, embora o tratado do campo de direitos humanitários, a Quarta Convenção de Genebra, de 1949, nos artigos 55 e 56, obrigue que as forças ocupantes garantam itens de saúde e medidas profiláticas, de prevenção e controle de doenças contagiosas. A decisão de não vacinar os palestinos configura um processo de extermínio populacional (RATTO, 2020): a Palestina é vítima de um crime grave e sabemos de quem é a autoria.

Rompendo com noções mais tradicionais acerca da concepção do conceito de saúde, que a reduz meramente à ausência de doenças, propondo uma visão biológica simplista, nos apegamos a uma noção histórica-social do processo de saúde-doença (ROCHA; DAVID, 2015). Esse processo histórico, explícito nessa relação, “possibilita alcançar a conceituação relativa ao processo da determinação” (ROCHA; DAVID, 2015, p. 130). Isso nos faz considerar que as vidas das pessoas são determinadas por outros fatores além dos biológicos, acarretando em um desenvolvimento desigual do adoecimento, conforme os marcadores de classe, gênero, raça, nacionalidade, entre outros.

A saúde é silenciosa e geralmente não a percebemos em sua plenitude. Na maior parte do tempo, apenas a identificamos quando adoecemos, sendo experienciada no âmago do corpo individual. Ouvir as lamúrias do próprio corpo é uma boa estratégia para assegurar a saúde com qualidade, pois não existe, de fato, um limite preciso entre a saúde e a doença, mas uma relação de reciprocidade entre ambas. Entre aquilo que é considerado saudável e patológico, existem aspectos sociais que incidem na vida dos sujeitos e causam doenças. Inclusive, alguns aspectos caros ao campo da Saúde Coletiva passam a interessar, tais como: a saúde das pessoas enquanto sujeitos inseridos na sociedade, as condições econômicas e sociais e as medidas de proteção (ROCHA; DAVID, 2015).

Os palestinos vivenciam a ocupação diuturnamente e é impossível escrever sobre a produção social da saúde sem considerar a coletividade e o caráter histórico social do processo saúde-doença. O governo de Netanyahu, ao tratar das responsabilidades sanitárias emergenciais, alega que a Autoridade Nacional Palestina (ANP) possui plena autonomia para lidar com a pandemia, não tendo o lado israelense responsabilidade legal em imunizar os palestinos (SODRÉ, 2021).

Ao mesmo tempo que o governo israelense alega autonomia aos palestinos, quando alguma medida sanitária é tomada em relação aos seus cidadãos, como, por exemplo, o envio de vacinas russas em fevereiro de 2021, a ANP é impedida de distribuí-las e fazê-las chegar à faixa de Gaza (SODRÉ, 2021), denotando, nitidamente, uma política xenofóbica e racista, se caracterizando como um regime de apartheid. Conforme previsto pelo direito humanitário internacional e pelos Regulamentos de Haia de 1997, é dever de toda a potência ocupante fornecer as vacinas a todos os cidadãos de forma indiscriminada (SODRÉ, 2021).

Inclusive, Barghouti (SODRÉ, 2021) salienta que a limpeza étnica é uma política silenciosa do Estado de Israel para anexar a região da Cisjordânia aos seus domínios, acusando que milhares de vacinas estão próximas da data de expiração de validade, o que levará aos seus descartes ao invés de cedê-las aos palestinos. Além de uma série de outras disparidades, como o lockdown que os israelenses estavam vivendo, enquanto os palestinos estavam expostos, trabalhando por imposição de seus patrões israelenses, além da obrigatoriedade imposta aos palestinos de passarem pelas barreiras militares (para trabalhar em Israel), que potencializa a propagação do vírus (SODRÉ, 2021).

Achille Mbembe (2019), quando fala acerca da ideia de necropolítica, descreve como as condições de morte operam seletivamente em favor de um determinado tipo de racionalidade, que se refletem em narrativas contrárias aos sujeitos em situações de subalternização – neste caso, os palestinos. As ações e omissões do governo de Israel para com o povo palestino se caracterizam como políticas de morte em inúmeras facetas, incluindo algumas supracitadas anteriormente aqui, para além da pandemia, mas também no que diz respeito ao controle de construção de residências palestinas em sua própria terra pelas autoridades administrativas israelenses, demolição em massa de residências e estruturas comerciais e industriais palestinas, construção de colônias judaicas ilegais no território ocupado, roubo de bens pelas autoridades administrativas da ocupação, espancamentos, ameaças e outras agressões e violações promovidas por militares e colonos judeus contra pessoas palestinas, incursão militar em campos de refugiados seguida de prisões administrativas e julgamentos em cortes militares israelenses e a restrição de movimento dos palestinos em sua própria terra (RATTO, 2020).

O povo palestino clama por justiça em tempos tão sombrios como esses de pandemia, que já ceifou milhões de pessoas pelo mundo todo, atingindo, sobretudo, pessoas menos favorecidas e em situação de vulnerabilidade. Inclusive, como afirma o enfermeiro Matthias Kennes (2021), que está atuando na linha de frente do combate ao coronavírus em Hebron, na Cisjordânia, “se perguntarem por que pessoas vulneráveis não podem ser vacinadas na Palestina, não sei como responder. É inexplicável e inacreditável. Pior do que isso – é injusto e cruel”. A situação pandêmica dos palestinos é caótica e Israel faz de tudo para dificultar mais ainda o combate à pandemia nos territórios palestinos.

Fátima Ali (Vice-presidenta da Federação Árabe-Palestina do Brasil (FEPAL); 

Muna Odeh é professora na Universidade de Brasília (UnB); 

Cristianne Famer Rocha é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); 

Vinicius Barbosa Cannavo é professor na UFRGS.

 

Foto: "A situação pandêmica dos palestinos é caótica e Israel faz de tudo para dificultar mais ainda”. (Foto: Médicos Sem Fronteira)

Fonte: Sul21

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