Israel sem máscaras, por uma feminista brasileira
Por Berenice Bento
Vigilância permanente. Proibição de atividades políticas. Espancamentos. Censura. Por trás dos rótulos de “única democracia do Oriente Médio” e “país libertário” esconde-se uma ditadura perfeita
Relato de viagem de Berenice Bento
Qual a maior peça publicitária do Estado de Israel? Ser a única democracia do Oriente Médio. Os Estados têm suas estratégias para produzir imagens positivadas, mesmo que não tenham nenhum fundamento empírico, a exemplo do mito perverso da democracia racial brasileira. Desmontar as farsas, meticulosamente construídas por Estados, demanda uma energia considerável.
Estive duas vezes na Palestina e em Israel. A primeira em agosto de 2015 para participar de um evento científico em Ramallah, capital da Cisjordânia. A segunda, de novembro de 2016 a janeiro de 2017. Foram 66 dias de imersão na realidade da “única democracia” do Oriente Médio. Tenho um longo diário de viagem com as histórias de perseguição do Estado aos/às palestinos/as e aos/às “árabes israelenses”, identidade fictícia produzida por Israel para negar a identidade palestina. Decidi, neste curto artigo, contar a minha própria experiência.
Em algum momento, na fase de preparação da primeira viagem, fui deslocada no tempo. Percebi que teria que utilizar técnicas de simulação para conseguir entrar em Israel, próximas àquelas que acionava para fugir da repressão na época da ditadura civil militar no Brasil. A suposta “democracia israelense” foi ficando cada vez mais borrada quando comecei a ter contato com diversas organizações de direitos humanos e humanitárias que têm suas sedes em Jerusalém Oriental (ocupada por Israel). Todas vivem em uma situação de clandestinidade ou de semiclandestinidade. Quando eu perguntava por que não denunciam abertamente a situação política ditatorial a que são submetidas, a resposta não alterava substancialmente: se assumirmos que estamos fazendo ativismo de direitos humanos aqui, somos deportados. A expressão chave é “low profile” (discrição). Nome chique e gringo para dizer: aqui corremos perigo, precisamos ter cuidado, ser discretos.
Organizei o relato de minha experiência em quatro partes: preparação, chegada, estadia e partida.
Preparação
Era a primeira vez que estava indo para o Oriente Médio. Foram meses de preparação. Quando tudo estava quase pronto, escrevi para a organização querendo saber se eles poderiam me passar algum contato de algum brasileiro/a que iria participar do evento. Talvez pudéssemos nos ajudar mutuamente com trocas de informações. A página do evento era pobre, não havia quase nenhuma informação sobre os trabalhos aprovados, tampouco os nomes dos/as pesquisadores/as. Aliás, não tinha nenhum nome pessoal na página. O que antes sugeria descuido começou a ter outros sentidos depois que recebi a resposta ao meu pedido: “não podemos fornecer nomes por questões de segurança”.
Iria escutar a mesma explicação outras vezes. Conforme o evento se aproximava, recebia orientações que seriam fundamentais para que eu conseguisse passar pelo controle de segurança no aeroporto em Tel Aviv. As mais importantes: 1) não diga que está indo para Ramallah, 2) mesmo que você vá direito para Ramallah, faça uma reserva em um hotel em Jerusalém Oriental (ocupada por Israel), 3) diga, preferencialmente, que está indo fazer turismo religioso, 4) apague de seu computador TODAS as mensagens que tenham o nome Palestina, 5) não tenha em sua bagagem pesada ou de mão nenhum livro ou matéria com as cores da bandeira ou/e o nome Palestina.
Na segunda viagem, estas mesmas orientações foram reforçadas por colegas de ONGs humanitárias (ainda agora, ao escrever este relato, me dou conta da situação absurda. Não posso citar nomes para não colocá-los/as em risco, uma vez que eles continuam trabalhando em Jerusalém Oriental e nos Territórios Ocupados por Israel). Afirmavam ser imperativo retirar todo material publicado nas minhas redes sociais em que eu fizesse referência à Palestina. Por uma semana retirei meus artigos do meu blog, apaguei fotos em que apareço com algum símbolo que me identificasse como apoiadora da luta pela autodeterminação do povo palestino. Despendi um tempo considerável limpando mensagens e saindo de grupos de whatsapp, fiz um roteiro fictício de peregrinação religiosa. Um último conselho de um amigo: vá bem vestida. Os militares que controlam a entrada no país gostam de gente que chega com roupas de marca e têm certo ar europeu (este último conselho tornou-se impossível seguir).
No aeroporto Ben Gurion
Há duas filas no aeroporto, uma para os estrangeiros e outra para os nacionais, considerado nesta categoria qualquer judeu de qualquer parte do mundo. Nas duas vezes, fui submetida a um pequeno interrogatório. Estas foram algumas das questões: É sua primeira vez? O que você vem fazer aqui? Conhece alguém? Por que você está sozinha (esta pergunta foi feita três vezes)? Onde ficará hospedada? Qual sua profissão? Quais as disciplinas que você ensina? Onde? Você tem um roteiro de sua visita? Você só tem reserva para poucos dias, e depois? (Recomendo o TedTalk Ramallah no Youtube de Alice Walker, escritora de A cor púrpura, no qual narra a sua entrada em Israel).
Eu tentava manter a calma e até esboçar um sorriso discreto para aparentar segurança, mas tinha certeza de que eu iria para o “room”, local onde os militares fazem os interrogatórios. Quase podia sentir meus joelhos tocando-se de tão trêmula. Para me acalmar, repetia um mantra enquanto via a fila diminuir: não tem problema, Berenice, se você não entrar, você tem para onde voltar. Pense nos/as palestinos/as, refugiados/as em seu próprio país. Pense nos/as exilados/as palestinos/as que não podem voltar para o seu país. Olhava a outra fila, não sabia quem era israelense ou judeu oriundo de outro país. Não sei porque, mas lembrei-me de um amigo judeu de esquerda que me disse: jamais vou pisar naquele aeroporto. Sinto vergonha.
Conheci muitas histórias de colegas que já tinham sido encaminhados para o “room”. Depois de horas de espera, e um interrogatório com níveis diferenciados de profundidade, a pessoa, finalmente, terá a permissão para entrar no país ou será deportada. Ainda não consigo entender o que o Brasil faz quando um/uma brasileiro/a tem a entrada negada por Israel. No entanto, não tenho notícia de nenhum/nenhuma israelense impedido/a de entrar no Brasil, o que sugere certa desproporcionalidade nas relações diplomáticas.
Os motivos alegados para a deportação geralmente são: parentes palestinos, sobrenome árabe, participação em manifestações de apoio ao povo palestino no Brasil e, o novo fantasma do Estado de Israel, apoiar ou participar do movimento de Boicote, Desinvestimentos e Sanções a Israel como forma de exigir o fim das políticas de apartheid impostas ao povo palestino.
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