Israel matou meu pai diante de meus olhos
Uma jornalista de Gaza conta a emocionante história do brutal assassinato de seu pai por forças da ocupação israelense
Sahar Taiseer Kalloub (esquerda) com seu pai (Foto: arquivo pessoal).
Mesmo como uma criança em Gaza eu entendi que o tempo não tem preço.
Que a diferença de um segundo ou um minuto poderia determinar se você vive ou morre. Se você chega em casa em segurança ou se você é morto pela bala de um sniper israelense.
Em Gaza, nossas vidas são vividas de acordo com o tempo dos militares israelenses.
Em 18 de maio de 2004 eu estava na casa de minha família em Tel Al-Sultan, parte próxima ao mar da cidade de Rafah, aninhada no seio de minha tia e provavelmente evitando os resmungos de minha mãe para que eu bebesse meu copo de leite matinal.
Embora eu tivesse apenas quatro anos, lembro de esperar impacientemente que meu pai voltasse para casa, porque ele havia prometido que retornaria com doces e abraços para mim.
Israel encontrou uma maneira de injetar sua crueldade até mesmo nesses pequenos momentos de felicidade, de modo que a perda se tornaria uma companhia para toda a minha vida.
Momentos depois o exército de ocupação israelense invadiu Tel Al-Sultan. Foi nesses segundos que minha vida futura foi determinada, quando um sniper israelense atirou em meu indefeso pai, que não fazia ideia de que uma invasão militar estava ocorrendo.
Os soldados israelenses o deixaram sangrando no chão até morrer. Eles negaram a entrada da ambulância na área onde meu pai foi atingido e ameaçaram atirar em qualquer um que se movesse em direção a ele.
3 de nossos vizinhos foram baleados e feridos desta maneira.
Presenciei em primeira mão uma cena horrível, sangrenta; uma cena que não fui capaz de esquecer.
Meu pai estava usando um short azul-bebê.
Desde então, não posso ver aquela cor sem pensar nela como a cor da morte.
A invasão israelense continuou até 24 de maio, matando ao menos 60 palestinos. Os corpos de muitos dos mortos, incluindo o do meu pai, tiveram que ser armazenados dentro de congeladores de frutas e sorvete porque o exército de ocupação restringiu o deslocamento.
Meu quinto aniversário foi apenas 7 dias depois que meu pai foi assassinado.
Eu lembro de como todos ao meu redor aquele dia – familiares e vizinhos – me abraçaram, acariciaram meu cabelo e beijaram minhas mãos. Foi deste jeito que eles conseguiram dizer que sentiram muito pela minha perda.
Meus familiares me desejaram saúde e felicidade eternas em todos os meus aniversários desde então. Mas isso não tem parecido ser possível, uma vez que a celebração de meu aniversário revive a dor da morte de meu pai.
Mês passado completei 23 anos e eu nunca pensei que fosse querer tanto voltar no tempo como eu quero agora.
Uma vida sem um pai
O nome do meu pai é Taiseer Kalloub. Estou usando deliberadamente o tempo presente aqui, pois o nome dele segue vivo apesar de sua morte.
Taiseer nasceu em Belém em agosto de 1975 e veio para Gaza ainda criança.
Ele tinha uma voz bonita e cantava noite e dia. Ele amava comida bem temperada e uma vez esculpiu um mapa da Palestina de gesso.
Os seus olhos eram Verde acinzentados com as bordas amendoadas, algo herdado pelo meu irmão mais novo, Ahmed, que tinha apenas 4 meses de idade quando meu pai foi morto.
Lembro de como meu pai cortava meu cabelo com minha família assistindo aos risos. Ele fazia até as minhas unhas tomando grande cuidado com minhas pequenas mãos.
Dezoito anos se passaram desde o assassinato de meu pai e, embora se possa esperar que a dor diminua com o tempo ou se aceite a tragédia, esta não foi a minha experiência.
Eu nunca fui capaz de me reconciliar com a brutalidade do assassinato dele. E passar por tal perda tão jovem apenas aprofunda a tragédia.
Simplesmente, quero meu pai de volta. Nada pode compensar essa perda.
Em tão completei 23 anos este ano não como uma versão mais brilhante de mim mesma, uma pessoa com otimismo o suficiente para esculpir um futuro e viver alegremente. Mas como alguém que é privada de seu pai com poços internos de devastação psicológica.
Se me fosse concedido um desejo de aniversário este ano, eu desejaria que meu pai voltasse à vida. Porque não estou preparada para passar este próximo aniversário sem ele.
Dor sem fim
Anualmente, conto meus votos de aniversário perdidos e só penso em uma possibilidade: como seria se ele estivesse aqui.
Cinco meses atrás, quando me formei com honras em inglês pela Universidade Islâmica de Gaza, fiz um discurso para a turma de formandos. O discurso foi em grande parte sobre meu pai.
Crescendo, eu não costumava falar sobre como perdi meu pai tão jovem. A dor pode viver como um segredo dentro de nós e, às vezes, uma perda é tão grande que só pode ser tratada individualmente.
Falar sobre isso requer coragem.
Embora estivesse orgulhosa de minhas realizações, de ter sido escolhida para fazer o discurso de formatura, desejei que meu pai estivesse lá, assim como desejei que ele estivesse lá no meu primeiro dia no jardim de infância para segurar minha mão.
Senti sua ausência naqueles momentos e em outros, como quando ansiava por lhe contar segredos sobre meu primeiro amor, minha primeira mentira e minha felicidade ao fazer meu primeiro bolo de laranja.
Ainda sentimos falta dele em nossos jantares em família, de como todos discutíamos sobre quem ficaria com o último pedaço de mana’eesh.
Meu pai merecia uma vida longa cheia de emoções e ocasiões felizes.
Ele merecia ver eu, meus irmãos e minhas irmãs envelhecermos.
Toda vez que mais um palestino é morto, eu me volto para dentro de mim mesma, à procura de paciência; então eu conto. Conto todos os membros daquela família que afundarão todas as noites em dor; quantos jantares eles vão perder; quantas lembranças deixaram para trás.
Meu pai deveria ter voltado para casa vivo naquele dia de 2004, junto com os doces que ele tinha decidido comprar.
Sahar Taiseer Kalloub é uma jornalista de Gaza.
Fonte: The Electronic Intifada
Traduzido por Caio Porto
DEIXE SEU COMENTÁRIO