O Estado brasileiro afogando os filhos de Oslo
A batalha está em nosso território. Em nossas mãos. Em qual lado você está?
Por Francirosy Campos Barbosa e Edgard Raoul Gomes Neto*
É com preocupação que nós, ativistas pelos direitos humanos, nos colocamos diante das declarações do presidente eleito, Jair Bolsonaro: “Como afirmado durante a campanha, pretendemos transferir a Embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém. Israel é um Estado Soberano e nós o respeitamos”. Esta fala foi publicada em vários meios de comunicação no Brasil e no exterior, assim como, em entrevista ao jornal (conservador) israelense “Israel Hayom”, quando o futuro presidente brasileiro afirmou que “a Palestina precisa primeiro ser um Estado para ter o direito de uma embaixada”. Sua fala se espelha na decisão do presidente dos EUA, ocorrida em dezembro de 2017, quando Trump reconheceu Jerusalém como capital de Israel, através de um ato político que promove os seus interesses próprios, como bem destacam Arturo Hartmann e Bruno Huberman no artigo “Trump não é louco: entenda a razão por trás da decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel”, publicado pelo ICArabe https://www.icarabe.org/politica-e-sociedade/trump-nao-e-louco-entenda-razao-por-tras-da-decisao-de-reconhecer-jerusalem
A questão que gostaríamos de levantar é o quanto o futuro presidente entende da causa palestina e sobre a limpeza étnica que vem sendo perpetrada pelo Estado de Israel há mais de 70 anos na Palestina. O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer o Estado da Palestina, assim como outros 139 países das 193 nações que integram a ONU – Organização das Nações Unidas -, incluindo o Vaticano. Vale destacar que a presente fala do futuro presidente certamente está atrelada a interesses que vão na contramão dos direitos humanos e busca se alinhar ao pensamento do presidente dos EUA.
Reconhecemos Israel como um Estado, mas reconhecemos, também, a Palestina, de fato e de direito. Por esta razão, não podemos silenciar diante de mais uma barbaridade em relação a um povo que, há mais de 70 anos vem sendo dizimado por uma ação de Estado ostensiva e violenta contra a sua população. Só em 2014 foram mais de duas mil pessoas mortas, sendo 500 crianças. No presente ano, já se contabilizou a morte de 222 palestinos, durante a “Grande Marcha de Retorno”, entre eles 33 crianças. Quase 12 mil pessoas foram seriamente lesionadas por atiradores de elite israelenses, das quais 1.815 crianças e 419 mulheres sofrerão sequelas por todas as suas vidas.
Além dos 70 anos de ocupação, destacamos que as mortes em território palestino são diárias e a violência nos diversos checkpoints deixa a todos vulneráveis, expostos às situações degradantes e, sobretudo, humilhantes.
Portanto, faz-se extremamente necessário que o presidente eleito considere que a violência cometida contra Palestina é uma violência que diz respeito a todos seres humanos, seja brasileiro, francês, nigeriano, muçulmano, cristão, judeu etc. Entendemos que é de sua responsabilidade - como líder do Executivo de um país - considerar o sofrimento e a dor das pessoas que foram arrancadas de suas casas e que tiveram as suas vidas forçadamente amputadas de seu local de pertencimento. Não podemos esconder da comunidade internacional que muitas crianças são criadas em campos de refugiados e em situações desumanas.
Por conseguinte, fazemos um apelo aos brasileiros que não se calem diante desta violência e que se manifestem contra este tipo de discurso. A mobilização de famílias palestinas e de outras nacionalidades árabes se faz extremamente necessário, no sentido de que hoje se dizima um povo, mas sabemos que isso é um reflexo das diversas violações a tantos outros povos e grupos étnicos/religiosos. É preciso considerar que povos do Oriente Médio, incluindo muçulmanos, em particular, sempre foram vistos como ameaça aos ocidentais. São – na maioria dos casos - considerados como bárbaros. Para os colonizadores, os povos colonizados são sempre inferiores culturalmente, o que para eles legitima a opressão.
O “Orientalismo” descrito por Edward Said se potencializa na atualidade, através de falas xenófobas e islamofóbicas. Faz-se necessário dar freio a este discurso e promover o que desejamos na nossa sociedade global, que é a promoção da paz e o respeito às diferenças.
Vivemos em um mundo que é fundamental a existência do pluralismo das ideias, mas é necessário e urgente que as vidas das pessoas sejam preservadas. Dizer que a Palestina não necessita de uma Embaixada é não considerar o sofrimento deste povo, nem sua história antes e após a Segunda Guerra Mundial. No Brasil há vários palestinos que construíram suas famílias neste país e que foram e são força de trabalho qualificado e importante para construção da nossa sociedade. Um presidente não deve governar para um seguimento da sociedade e sim para todos, mesmo para aqueles que não o elegeram.
Cabe recordar um trecho da carta de Nelson Mandela ao jornalista norte-americano Thomas Friedman: “O Estado palestino não pode ser um subproduto do Estado judeu, só para conservar a pureza judaica de Israel... O apartheid é um crime contra a humanidade. Israel privou milhões de palestinos da sua liberdade e da sua propriedade. Ele perpetua um sistema de discriminação racial e de desigualdade. Encarcerou e torturou sistematicamente milhares de palestinos, em violação do direito internacional. Desencadeou uma guerra contra a população civil e em especial contra as crianças”.
Segundo diversos ramos da academia já entendem que a situação da Palestina é caso de genocídio e limpeza étnica, no qual temos a violação dos direitos de ir e vir – entre a privação de tantos outros direitos fundamentais – e de todos os tipos de violações que ferem a nossa humanidade. As mortes de crianças, mulheres e homens palestinos são cotidianas e não devem ser aceitas e/ou relativizadas pela comunidade mundial. A luta pela liberdade de um povo é a luta de todo humanista. Cabe ao Estado brasileiro se juntar e continuar apoiando institucionalmente a luta pela sobrevivência do povo palestino e não colaborar com um discurso e ações que promovem tão somente o seu genocídio, através de uma limpeza étnica estruturada pelo Estado de Israel.
Ao Brasil – incluindo árabes e não árabes – aqui residentes, esperamos que se pronunciem contra esta designação que trará ainda mais violência ao povo sofrido e esquecido no imaginário mundial. Não podemos silenciar diante do sofrimento do outro, porque estaremos silenciando a violação dos direitos humanos. Não é possível construir um legado de desenvolvimento, quando se dizimam povos em nome de dinheiro e interesses escusos. Em diversos casos utiliza-se, também, o nome da religião e de Deus, para ganhar vantagens e soberania. A opressão e a desigualdade social devem ser combatidas por todo cidadão. E deve ser uma luta diária. Não há sociedade mais evoluída que outra, mas sim, sociedades/culturas que se diferem e que podem coexistir. Portanto, devemos nos unir em respeito à integridade da pessoa humana. Nesse sentido, esperamos que o estado brasileiro não represente o lado dos violadores e sim do respeito à diversidade de povos, costumes e promova a paz dentro e fora do nosso país.
Por fim, vale destacar e reiterar que não é possível defender ética e moralmente, em um plano mínimo de humanidade, as ações de Israel frente aos cidadãos palestinos. Explicamos. Israel é o único país do mundo a processar automaticamente crianças em tribunais militares que carecem de direitos básicos para um julgamento justo. Mas quando a sociedade civil, assim como pessoas públicas destacam esses abusos contra as crianças palestinas, elas se deparam com uma variedade de técnicas de intimidação que pretendem silenciá-las e manter a verdade trancada longe do acesso do público. Nossos ideais de liberdade de expressão e, mais importante, a crença de que as crianças não devem ser tratadas de tal maneira, são o principal motivo para destacar este exemplo e reiterar que, enquanto nos silenciarmos diante dessa questão, seremos coprodutores e corresponsáveis por esses abusos diários. Vale dizer que o sangue das famílias palestinas também estão em nossas mãos, em nossa pele.
Como relata Mohammed AbuJayyab “chegamos a um ponto em nossa cultura coletiva em que celebramos alguém como Gal Gadot como uma Mulher Maravilha e como um símbolo do feminismo forte, enquanto indiretamente celebra a militarização através de sua história de serviço no exército israelense. Estamos buscando uma nova visão em que alguém como Ahed Tamimi - uma adolescente palestina condenada à prisão por ter esbofeteado um soldado israelense - seja celebrada como uma verdadeira Mulher Maravilha e um verdadeiro símbolo de resistência. Estamos buscando um mundo que não veja encantamento na militarização e não veja justificativa para deter crianças. Enquanto isso, temos que lutar para que este mundo exista.”
E, neste momento, a batalha está em nosso território. Em nossas mãos. Em qual lado você está?
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Francirosy Campos Barbosa é antropóloga, pós-doutora pela Universidade de Oxford, docente da FFCLRP/USP, coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabe e Edgard Raoul Gomes Neto é advogado, pesquisador na área de Direitos Humanos, criador do projeto Hands On Human Rigths e coprodutor do projeto “Farming as a Project of Belonging” de autoria de Mohammed AbuJayyab
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