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O paradoxo do dinheiro árabe que destrói e reconstrói Gaza

A história cobrará caro a omissão das dinastias árabes. Por covardia, elas permitiram que a causa palestina fosse diluída em acordos bilionários e cúpulas de fachada

Há uma ironia trágica no genocídio palestino: os sionistas matam palestinos com dinheiro árabe, e agora pretendem reconstruir Gaza com o dinheiro da mesma fonte. Essa contradição brutal sintetiza mais de sete décadas de submissão política e moral de dinastias árabes que preferem a estabilidade dos seus tronos ao custo da ocupação, do apartheid e do genocídio do povo palestino.

Desde 1948, o sofrimento palestino é alimentado não apenas pela violência israelense com apoio incondicional dos Estados Unidos, mas também pela cumplicidade silenciosa dos regimes árabes, especialmente as monarquias do Golfo, a dinastia saudita e o reino colonial marroquino. São governos que possuem riqueza, influência e poder diplomático para mudar o curso da história, mas que escolheram o conforto da neutralidade e o lucro da inércia.

Durante décadas, o petróleo e o capital árabe financiaram o sistema internacional que sustenta “israel”. O fluxo trilionário de petrodólares para bancos ocidentais, fundos de investimento e contratos militares acabou fortalecendo os mesmos centros de poder que armam o exército israelense. De forma indireta, as bombas que destroem Gaza são pagas com a riqueza que deveria proteger o povo árabe.

E, quando o genocídio cessa por um instante, as potências voltam-se às monarquias ricas do Golfo para financiar a reconstrução das ruínas, reconstrução esta que, na prática, significa novos contratos para empresas israelenses e ocidentais. Gaza é transformada em negócio: destrói-se com dinheiro árabe, reconstrói-se com dinheiro árabe, e o lucro volta para as corporações do opressor sionista.

Essa engrenagem perversa se repete há décadas porque as dinastias árabes abdicaram do papel de liderar a libertação da Palestina. A Arábia Saudita, por exemplo, que se autoproclama “guardiã dos lugares sagrados do Islã”, mantém relações discretas, mas constantes, com o regime sionista.

O Reino do Marrocos, que assinou em 2020 os Acordos de Abraão, trocou o reconhecimento de “israel” pelo apoio dos Estados Unidos à sua ocupação ilegal, seus crimes e o roubo das riquezas do Saara Ocidental, uma barganha colonial por outra.

Os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein seguiram o mesmo caminho, normalizando relações diplomáticas e econômicas com Tel Aviv sem exigir qualquer garantia real para os palestinos. O Sudão, pressionado por sanções americanas, também foi empurrado para o mesmo acordo vergonhoso.

Os Acordos de Abraão, assinados em 2020 sob mediação do governo Donald Trump, foram apresentados como uma “nova era de paz” no Oriente Médio. Na prática, serviram como armadilha para legitimar a ocupação israelense e esvaziar o tema palestino das agendas regionais e enterrar a já frágil solução de dois estados.

Em vez de promover uma solução justa, os acordos consolidaram a normalização do inaceitável. Segundo pesquisa de opinião feita para o Arab News (https://www.arabnews.com/node/2303321), publicada em 14 de maio de 2023, mostra que 64% dos palestinos são contrários aos Acordos de Abraão, considerando-os uma traição à causa nacional palestina. A normalização diplomática abriu portas para o comércio, turismo e investimentos mútuos, mas fechou o coração do mundo árabe à dor de Gaza.

Enquanto o sangue palestino corre nas ruas de Rafah e Khan Yunis, líderes árabes se reúnem em cúpulas luxuosas para emitir comunicados vagos de “preocupação” e “indignação” vazias. Nenhuma sanção econômica a “israel”, nenhum embargo de petróleo, nenhuma ruptura diplomática.

As mesmas monarquias que poderiam usar sua riqueza para pressionar Washington e Tel Aviv, preferem manter o status quo para preservar contratos, garantir segurança interna e continuar recebendo proteção militar das potências ocidentais. Trata-se de uma escolha consciente, não de impotência. É a opção pela cumplicidade com o genocídio palestino.

A reconstrução de Gaza, vendida como gesto humanitário, é apenas a continuação do mesmo ciclo. Recursos árabes financiarão obras supervisionadas por agências internacionais alinhadas com o Ocidente, com pouca ou nenhuma participação palestina nas decisões. O povo que perdeu casas, famílias e futuro será, mais uma vez, espectador de um processo que o exclui. Gaza não precisa apenas ser reconstruída, precisa ser libertada do sistema econômico e político que a destrói e mata, e depois se oferece para “ajudar”.

A história cobrará caro a omissão das dinastias árabes. Por covardia, elas permitiram que a causa palestina fosse diluída em acordos bilionários e cúpulas de fachada. Por ambição, transformaram a dor de um povo em moeda de troca diplomática. E por submissão, aceitaram que o sionismo, sustentado por Washington, ditasse os limites da sua própria soberania.

Enquanto o dinheiro árabe continuar a alimentar o arsenal do opressor, a bandeira palestina seguirá manchada não apenas pelo sangue de seus mártires, mas também pela vergonha de quem poderia deter o massacre e escolheu o silêncio.

 

Sayid Marcos Tenório é Historiador e Especialista em Relações Internacionais. É fundador e vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal). Autor dos livros Palestina: do mito da terra prometida à terra da resistência (2. Ed. Anita Garibaldi/Ibraspal, 2022); e Imalês: Fragmentos da presença de muçulmanos nas revoltas contra a escravidão no Brasil (1. Ed. Appris, 2022).

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