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Os gestos de levantes na Palestina

Por Muhamad Subhi Mahmud Hasan Husein

Setenta e dois anos de resistência na Palestina contra a ocupação israelense. Como explicar que ainda existe uma resistência que ressurge com imagens tão fortes? O que se ganha ao enfrentar um tanque de guerra israelense somente com paus e pedras?
 
A mulher na foto da foto acima não se mostra intimidada mesmo com todo o cenário de guerra a sua volta. Seu gesto de levante é encorajado pelo quê? De onde vem esta cólera? De que adianta jogar pedras contra soldados fortemente armados predispostos e autorizados a apertar o gatilho a qualquer instante? Para os snipers israelenses, não há discriminação de sexo ou idade, é uma escolha aleatória que não discrimina mulheres, profissionais da saúde, da imprensa, e até mesmo deficientes físicos e com isso faz parecer que não causa nenhum trauma ou consequência para o atirador, a não ser a demonstração da mais pura desumanidade e crueldade. É só mais um “inimigo” que cai. Não importa o motivo, aliás, a maioria dos soldados nem sabe o motivo real de estar lá na linha de frente, para eles são só pessoas que querem usurpar-lhes algo, atentar contra sua vida, causar algum mal. Para eles, a maldade só existe do lado de quem está se manifestando, pois em suas verdades, o mal, que já está distorcido em suas mentes decorrente da educação recebida nas escolas, torna-se competência exclusiva dos palestinos. Atirar para ferir ou matar é só uma escolha. Praticar o mal contra estas pessoas é normal, banal, sem conflitos com a moralidade e a dignidade humana. Estes exemplos confirmam uma hipótese lançada como “banalidade do mal” por Hannah Arendt em sua obra Eichmann em Jerusalém, de 1963 baseado em seus relatos escritos para o jornal The New Yorker sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann. Arendt realiza uma análise do “ser humano (ou indivíduo) Eichman” que, segundo ela, não possuía nenhum histórico racista contra os judeus e tampouco apresentava características de ser uma pessoa doente ou sem caráter. Arendt utiliza o depoimento de Eichmann para deduzir que ele simplesmente fez o que acreditava ser sua função ao cumprir as ordens dos superiores enviando judeus para os “trens da morte”, pensando meramente numa ascensão profissional, utilizando-se de um raciocínio que o conduzia a uma lógica burocrática e nada mais. Ele cumpria ordens, sem colocar em questão se o que estava fazendo era certo ou errado. As executava com zelo e eficiência e, após uma jornada de trabalho, retornava ao seu lar com a sensação de dever cumprido. Arendt fala da frieza do mal que é produzido num meio político e histórico e tem espaço reconhecido institucionalmente para este tipo de atitude. É o que o governo sionista faz. Não é religião ou “disputa” territorial. É uma política racista que tem pretensões mórbidas, que afirma fazer o que faz para “garantir” a segurança dos israelenses, mas desconsidera qualquer senso de humanidade com o outro. A violência torna-se trivial, o raciocínio lógico ultrapassa os limites da noção de humanidade e moralidade, e a banalidade do mal se instaura.
 
No contexto de desumanização do outro, Achille Mbembe, filósofo camaronês da decolonização, conceituou o termo necropolítica e explicou claramente como se reconfiguram as relações entre resistência (como a própria sobrevivência, a resistência pacífica ou a resistência armada), o sacrifício e o terror. Ele demonstra que as noções de necropolítica e necropoder podem explicar como armas de fogo são implantadas e utilizadas sobre populações, não para destruí-las por completo, mas para submetê-las, de modo que se forme uma “existência social”, uma sobrevida. Assim, o governante decide quem deve morrer e quem pode viver. Mas não são só as armas que têm essa capacidade, em uma ocupação ou num regime colonial, o terror articulado com uma estratégia de humilhação constante também faz esse papel. Segundo Mbembe,
 
"O terror é uma característica que define tanto os Estados escravistas quanto os regimes coloniais tardo-modernos. Ambos os regimes são também instâncias e experiências específicas de ausência de liberdade. Viver sob a ocupação tardo-moderna é experimentar uma condição permanente de “estar na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites desde o anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias; soldados urinando nas cercas, atirando nos tanques de água dos telhados só por diversão, repetindo slogans ofensivos, batendo nas portas frágeis de lata para assustar as crianças, confiscando papéis ou despejando lixo no meio de um bairro residencial; guardas de fronteira chutando uma banca de legumes ou fechando fronteiras sem motivo algum; ossos quebrados; tiroteios e fatalidades. (MBEMBE, 2013, p. 146)
 
O terror utilizado pelas forças coloniais para submeter a maioria palestina é estratégico e repetitivo. A repressão é uma arma da dominação. Manter os palestinos “dominados” sob vigilância constante, sob o jugo do estado sionista, realizando constantes atos de humilhação, controles de movimentação, supressão dos princípios básicos de cidadania e infligir dor a quem desobedece suas regras. Tudo para manter a colonização e a ocupação de um território e de um povo inteiro. A principal arma utilizada pelo governante colonizador é a desumanização do colonizado para a aceitação ou conformidade perante a comunidade internacional. 
 
Mas o que surpreende, é que mesmo sabendo da possibilidade iminente da morte, os palestinos continuam se levantando, resistindo há mais de sete décadas. O filósofo Georges Didi-Huberman, em sua teoria sobre os Levantes, reflete sobre o que faz as pessoas se mobilizarem, e vai mais além, faz pensar por que elas se sublevam (insurgem) e contra o que ou contra quem estão se rebelando. Parte do princípio que inicialmente elas se acomodam perante as humilhações, e mesmo coletivamente, com um número e poder maior, ficam paralisadas diante das ameaças e das agressões que sofrem dos opressores. Para o filósofo e antropólogo das imagens, o que nos dá força e nos empurra às rebeliões são as forças mentais, físicas e sociais (opressivas), e afirma que “é através destas forças que transformamos a imobilidade em movimento, a opressão em energia, a submissão em revolta” (DIDI-HUBERMAN, 2017). Esta perspectiva trata dos diferentes gestos de insurgência e de revolta daqueles que se levantam na Palestina. São gestos impulsionados por sentimentos que mobilizam ações e desejo de mudança, desejo de acabar com a opressão, desejo de liberdade, de paz.
 
Fadi Abu Salah resistindo à repressão israelense em 2018, Fonte: Prêmio Prix Bayeux de Correspondentes de Guerra
Fadi Abu Salah, palestino de vinte e nove anos, resistiu à repressão israelense na fronteira da Faixa de Gaza com Israel na chamada Grande Marcha do Retorno. Os soldados israelenses receberam ordens para reagir e começaram a atirar contra os manifestantes que jogavam pedras e queimavam pneus do outro lado da cerca de arame farpado. Fadi foi atingido no peito por uma bala explosiva e morreu no local. Exatamente um ano após o início da Grande Marcha do Retorno em 30 de março de 2018, cerca de duzentos e vinte palestinos foram assassinados, entre eles, mulheres, crianças e outros portadores de necessidades especiais e mutilados além de Fadi Abu Salah, além de deixar mais de dois mil e quatrocentos feridos com tiros. Segundo a família, Fadi já havia perdido as duas pernas em 2008 em um bombardeio aéreo de drones durante a invasão de Israel em Gaza. Numa entrevista, Fadi disse que manteria sua participação nas manifestações em Gaza "até que a Palestina seja livre e o bloqueio israelense tenha sido suspenso". Ele era casado e tinha cinco filhos. Sua esposa Amina relatou a agência de notícias que os soldados israelenses o atacaram inúmeras vezes com bombas de gás lacrimogênio em sua cadeira de rodas, principalmente quando suas imagens com a funda começaram a circular pela internet. Centenas de sites e redes sociais noticiaram sua morte. A fotografia de Fadi biamputado na cadeira de rodas armado com uma funda pronto para arremessar uma pedra contra um exército fortemente armado, capaz de atirar sem hesitar, é uma imagem que impressiona qualquer espectador. A imagem foi tão marcante que estimulou outros palestinos a se mobilizarem junto a Fadi nas manifestações. Eles o consideraram um herói e, após sua morte um mártir (shahid). 
 
Diante desses martírios de civis palestinos ante as forças de ocupação israelenses, estudar os gestos de levantes na Palestina através das lentes de Didi-Hubermann e Mbembe nos permite compreender, ainda que em parte, as motivações da resistência palestina após mais de 70 anos de desumanização, ocupação e morte. Resistir configura-se, neste caso, como um atestado de existência e de humanidade. Os governantes de Israel precisam entender e reconhecer que os palestinos, sejam eles homens e mulheres, médicos, socorristas, jornalistas, crianças, mutilados ou portadores de necessidades especiais, mesmo após todas as humilhações e expropriações, continuarão lutando pela igualdade de direitos, liberdade e paz.
 
 
Referências Bibliográficas
 
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 
DIDI-HUBERMAN, Georges. Levantes. Catálogo da exposição no SESC Pinheiros. São Paulo: Editora do SESC, 2017.
FREUD, Sigmund. Interpretação dos sonhos (1900). São Paulo: Imago, 2011.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Rio de Janeiro: Revista Arte & Ensaios, UFRJ, nº 32, dezembro de 2016.
 
Muhamad Subhi Mahmud Hasan Husein é docente do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de santa Catarina (UFSC), graduado em Matemática e em Administração, Mestre em Matemática e Doutor em Ciências da Linguagem com a tese intitulada “A Intifada como gesto”.
 
Figura 1: Mulher palestina atirando pedras em soldados israelenses na fronteira de Gaza com Israel, fonte: The Telegraph, 2018

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