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Para muitos, a Nakba é diária: por basta nas violações de Israel à Palestina

Por Mylenna Souza Lirio

No dia 14 de Maio, e ao redor da data, constataremos mundialmente diversas manifestações culturais, discursos, eventos, festas, protestos (neste caso esperamos que sem nenhum tipo de violência) e declarações importantes sobre a criação do Estado de Israel. A respeito dos discursos, especificamente, será importante verificar o que haverá por detrás das palavras fortes, bonitas ou não e de tonalidades especificas e muito bem treinadas para um discurso político, sobre as relações internacionais para o Estado de Israel com a Palestina, questão até hoje não resolvida.

 

Falar em 70 anos da criação do Estado de Israel, será o mesmo que dizer sobre o atenuamento e gradual intensificação do conflito entre palestinos e israelenses há também 70 anos. De um lado, para muitos, considerado a vitória de um povo tão sofrido e perseguido durante toda a sua diáspora pelo mundo, os judeus, e o reconhecimento final de sua causa, com a permissão (ilegítima, mas legítima num contexto imperialista) para a criação de um estado judeu na Palestina. De outro lado, será lembrado 70 anos do início de um processo genocidário e de negação de um povo, cultura e signos identitários específicos, e a negação de suas tentativas de autodeterminação.

 

São 70 anos com guerras de larga e estreita envergadura. De intentadas revoluções, sempre culminadas em violência desigual, de grupos armados, radicais, formados com armas sucateadas e bombas antigas contra um Estado, que representa hoje uma das maiores potências militares do mundo, em termos de efetivos, equipamentos e tecnologia avançada. Todo o mesmo aparato militar, contra civis em sua maioria armados com paus e pedras, entregues à sua única opção, em seu último grau de indignação, a de resistir por algo além do seu patriotismo e amor à sua terra.

 

A conveniência política em um contexto imperialista, traduz a miséria imposta à Palestina: condenados a uma vida desvalida e desabastecida a não ser que se submetam a trabalhos subalternos em meio aos israelenses, sofrendo todo o tipo de discriminação, ou ainda, o de negar sua própria origem para assim se adaptar e transformar sua própria identidade: os palestinos que se tornam israelenses. É compreensível e de nenhuma forma condenável do ponto confortável e seguro (nem tanto) com que escrevemos estas linhas, haja vista que, o projeto pessoal do indivíduo transpassa as questões pessoais de apenas sobrevivência, quando a possibilidade de criar horizontes, perspectivas e oportunidades estão em jogo. Vislumbrar um futuro, não é uma possibilidade a todos os palestinos. Vislumbrar a vida ocidental e não ter perspectiva de ter uma vida semelhante, impulsiona muitos jovens a deixarem sua terra na busca da “liberdade” do capitalismo e da democracia.

 

Já temos diversas gerações de palestinos que nasceram, cresceram e têm sobrevivido (uma constante) a um cenário belicoso, com pouca ou nenhuma infraestrutura, politizados desde pequenos a compreenderem porquê estão ali, desta ou daquela situação, porquê é daquela forma o acesso à água, eletricidade ou porquê é tão controlado seu ir e vir no próprio território e porquê, devem temer o Estado de Israel. O conflito paramilitar é político, sem qualquer separação da vida dos civis que circundam e vivem nos mesmos espaços de diários bombardeios, assassinatos, prisões políticas, estupros e o crescimento de assentamentos ilegais.

 

Neste sentido, como não identificar em todo o conflito, indícios de genocídio? Para fins jurídicos não há a clareza quanto a aplicação do termo, como tanto se discute internacionalmente sobre o conceito a ser aplicado, e sobre a possibilidade de julgar ou não os responsáveis pelos principais massacres e genocídios na era contemporânea, mas não há como negar e apoiar o seu uso político. A discussão versa sobre o fato de que o genocídio deveria ser considerado uma ação coordenada do estado para liquidar um povo dentro outros elementos quantitativos e qualitativos que ao não serem comprovados, invalidariam a utilização do termo jurídico.

 

Ora, as declarações dos políticos israelenses e as ações das milícias militares, bem como os livros de registros de contagem das vilas palestinas que foram dizimadas, não seriam provas? A destruição ou agressões simbólicas a escolas, museus e ou espaços de cultura na tentativa de anular, liquidar, negar e abominar uma identidade não faz parte de ações genocidas? Prejudicar, dificultar propositalmente, ou até impedir o desenvolvimento socioeconômico de um território, com severos embargos econômicos, altas taxações não é uma forma de impedir? Não permitir a livre transação comercial entre outros países e empresas com a Palestina, não é uma forma de impedir? Promover boicote, cortar relações diplomáticas ou impor embargos a países e empresas que se declararem a favor da formalização da Palestina como Estado e da sua participação da ONU não é uma forma de negar sua existência e aniquilá-la? Não reconhecer o outro, desejar que não exista e praticar ações que transformem viver em sobreviver é uma forma também de matar. Assinar resoluções e declarações internacionais pela paz e delimitação de território, mas violar, encobrir, permitir, apoiar, promover e coagir com as violações, com a construção de assentamentos ilegais na Palestina, não é uma forma de imperialismo territorial, de conquista colonizadora que prevê a expulsão ou aniquilação do povo ali existente? Construir um muro de Apertheid não faz parte de um projeto genocida? Como uma marcha pacífica, justamente a do “Direito ao Retorno dos palestinos expulsos” registra ataques militares israelenses, com dezenas de mortos e centenas de feridos? O que há de pensamento político por trás das ações coordenadas do Estado para a Palestina, além da permanência histórica do Sionismo e da sua modernização? Qual a relação com estes discursos políticos, com a ação de franco-atiradores espalhados pela Palestina, que executam civis em suas ações diárias, como por exemplo a de Muhammad Abu Amro de 22 anos que foi executado enquanto fazia esculturas na areia da praia em Gaza?

 

São praticas militares, da lógica da guerra que violam inclusive os tratados de guerra. O estupro como arma de guerra, os franco atiradores à paisana, independentes e escondidos nas cidades, os pescadores fuzilados em seus barcos, os camponeses, fuzilados durante a colheita, o corte de água e de energia elétrica. Estas e outras situações e estratégias antigas, são assustadoramente similares às mesmas praticadas durante as grandes guerras, massacres e genocídios na história moderna, incluindo a dos judeus, conhecida como Shoá.

 

O que levaria então, diante de tanto sofrimento humano já conhecido e vivenciado, após tantos anos e avanços nos estudos sociais da história, da política e das guerras, à repetição de tais práticas? Será ainda, que o imperialismo, já não chamado dessa forma, haja vista o desgaste politico e ideológico do termo, mas sua essência viva e transformada nos dias de hoje? O que paira nas relações internacionais, de caráter tão realista não tem nome. Apesar dos diversos atores da política,  hoje reconhecidos, são secundários ou não possuem grande influência sobre as decisões, e portanto ,é ainda o Estado o principal agente, no que se refere à realidade beligerante das relações internacionais. Quem vai parar Israel? Não são as organizações, empresariado, ou o boicote intelectual e econômico. É mais difícil, porque as possibilidades são as mesmas que de diversos países ditos democráticos: é necessário que alas progressistas israelenses que reconheçam a Palestina, se fortaleçam e vençam eleições, para a proposta de uma nova política internacional, mais humanitária com a revisão de território, sem assentamentos ilegais e conflitos, não apenas para o bem-viver com os palestinos, mas para o desenvolvimento socioeconômico de todo o povo palestino.

 

A forma como se desenrolou as inúmeras divisões, revisões e violações, desconstrução e emenda do que restou, na Palestina, em seu território tão fragmentado, reproduz guardadas as devidas proporções o mesmo que se verifica nos países da realidade periférica do sistema internacional: a dependência das grandes potências, o endividamento a preço alto, seja em taxas, seja em compromisso neoliberal, a corrupção, o crime organizado e a violência em larga escala. É esse o destino que muitas potências, esperam também da Palestina (se hipoteticamente fosse devolvido seu território e permitida sua autodeterminação e inserção como ator das relações internacionais), pois se resolverem a questão com Israel, poderão logo se endividar com o FMI, promover uma política neoliberal em prol do desenvolvimento e da modernização do Estado. É esta a condição de Israel sobre a Palestina, uma liberdade como colônia, que possa facilmente ser neutralizada e subserviente sempre que lhe convir.

 

É uma reflexão séria a ser feita aos palestinos. No pleito, justo, por ser reconhecido como Estado, optariam os Palestinos por uma implementação de um “estado moderno”, em que soldados midiáticos poderão comprar corações e mentes palestinas, que queiram ser esse ator subserviente, neoliberal e democrático aos moldes ocidentais, desde que tenham paz, saúde, segurança, políticas públicas ainda que nas mãos do mercado, ou obter independência e o direito de decidir sobre os seus próprios rumos, organização política e desenvolvimento, baseado seus signos identitários, culturais e políticos?

 

Qual seria o medo do mundo? Todos os dias, a Nakba, é lembrada pelos palestinos de forma compulsória. Todos os dias ao tentar ir trabalhar, ao beber agua, ao comer, ao ligar a tv, ao olhar pela janela, são lembrados que vivem e persistem em estar em uma terra, que é sua, mas que que não são bem-vindos por Israel e tão cedo não o serão, a não ser que seja como escravos. Até quando, as vidas não serão mais importantes? O que podemos dar aos palestinos, para alimentar sua esperança e determinação? Como, podemos ser solidários e fomentar teorias críticas que possam contribuir com o povo palestino, e nos somarmos às vozes que pressionam o Conselho de Segurança da ONU quanto a construção de assentamentos ilegais, conflitos desiguais e embargos econômicos impostos à Palestina? Até quando, assistiremos o sofrimento dos nossos iguais? Até quando, o sistema internacional vai intervir apenas em questões que respondam aos seus interesses e acordos econômicos e não a questões humanitárias?

 

Do Brasil, precisamente de São Paulo, meu mais profundo respeito e solidariedade à causa palestina, essa que tenho me dedicado a estudar nos últimos cinco anos, bem como meu sonho, por um Estado da Palestina, verdadeiramente livre!.

 

O que deve ser dito
Günter Grass

Porque guardo silêncio há demasiado tempo
sobre o que é manifesto 
e se utilizava em jogos de guerra 
em que no fim, nós sobreviventes,
acabamos como meras notas de rodapé.

É o suposto direito a um ataque preventivo,
que poderá exterminar o povo iraniano,
conduzido ao júbilo 
e organizado por um fanfarrão,
porque na sua jurisdição se suspeita
do fabrico de uma bomba atômica.

Mas por que me proibiram de falar
sobre esse outro país [Israel], onde há anos
- ainda que mantido em segredo – 
se dispõe de um crescente potencial nuclear, 
que não está sujeito a nenhum controle, 
pois é inacessível a inspeções?

O silêncio geral sobre esse fato,
a que se sujeitou o meu próprio silêncio, 
sinto-o como uma gravosa mentira
e coação que ameaça castigar
quando não é respeitada: 
“antissemitismo” se chama a condenação.

Agora, contudo, porque o meu país,
acusado uma e outra vez, rotineiramente,
de crimes muito próprios, 
sem quaisquer precedentes,
vai entregar a Israel outro submarino
cuja especialidade é dirigir ogivas aniquiladoras
para onde não ficou provada 
a existência de uma única bomba, 
se bem que se queira instituir o medo como prova… digo o que deve ser dito.

Por que me calei até agora?

Porque acreditava que a minha origem, 
marcada por um estigma inapagável, 
me impedia de atribuir esse fato, como evidente,
ao país de Israel, ao qual estou unido
e quero continuar a estar.

Por que motivo só agora digo,
já velho e com a minha última tinta,
que Israel, potência nuclear, coloca em perigo 
uma paz mundial já de si frágil?

Porque deve ser dito 
aquilo que amanhã poderá ser demasiado tarde [a dizer], 
e porque – já suficientemente incriminados como alemães – 
poderíamos ser cúmplices de um crime
que é previsível,
pelo que a nossa cota-parte de culpa
não poderia extinguir-se
com nenhuma das desculpas habituais.

Admito-o: não vou continuar a calar-me
porque estou farto
da hipocrisia do Ocidente;
é de esperar, além disso,
que muitos se libertem do silêncio,
exijam ao causador desse perigo visível 
que renuncie ao uso da força
e insistam também para que os governos
de ambos os países permitam
o controle permanente e sem entraves,
por parte de uma instância internacional,
do potencial nuclear israelense
e das instalações nucleares iranianas.

Só assim poderemos ajudar todos,
israelenses e palestinos, 
mas também todos os seres humanos
que nessa região ocupada pela demência
vivem em conflito lado a lado,
odiando-se mutuamente,
e decididamente ajudar-nos também.

(Poema publicado no Jornal Brasil de Fato em 09/04/2012 - https://www.brasildefato.com.br/content/o-poema-que-desmascarou-israel/)

 

Bibliografia

 

BUZZETO, Marcelo. A questão palestina: guerra política e relações internacionais. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

CAMARGO, Claudio. Guerras Árabes Israelenses. In. História das Guerras. Org. MAGNOLI, Demétrio. São Paulo: Contexto, 2011. (p 425-451)

CLEMESHA, Arlene. E. Palestina, 48-08: desenraizamento e desapropriação. Tiraz. Disponível em https://edisciplinas.usp.br/course/view.php?id=13686

FILKEINSTEIN, Norman G. Imagem e Realidade do Conflito Israel-Palestina. Rio de Janeiro: Record, 2005, pp. 59-76 [cap. 1. Orientações sionistas].

GILBERT, Norman. História de Israel. São Paulo: Edições 70, 2010. [Cap. 1. Ideais de Soberania].

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LENIN, Vladimir I. O Imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Centauro Editora, 4ª Edição, 2010.

SEMELIN, Jacques. Purificar e Destruir: os usos políticos dos massacres e genocídios. Rio de Janeiro: Difel,2009, pp.423-500 (“Os usos políticos dos massacres e genocídios”).

PAPPE, Ilan. História da Palestina Moderna: Uma terra, dois povos. Lisboa, Editorial Caminho, 2007. Introdução p.27-40.

SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso,2012. 3ª Edição.

SAID, Edward. A questão da Palestina. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

 

 

*Mylenna Souza Lirio - Pesquisadora do Grupo de Pesquisa "Conflitos Armados, Massacres e Genocídios na Era Contemporânea" da Universidade Federal de São Paulo - EPPEN

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