Quem leva casa, também leva cozinha
apropriação cultural, sionismo e a formação da identidade "nacional" israelense às custas dos palestinos.
"O que você mais gosta da culinária portuguesa? Açaí, tapioca ou tacacá? Agora, português que é português tem que ter uma jabuticabeira no quintal!"
Esquisito, né? Pois é exatamente assim que soa quem fala algo como o que se segue abaixo:
"O que você mais gosta da culinária israelense? Homus, falafel ou maqluba? Agora, israelense que é israelense tem que ter uma oliveira no quintal!"
Pode parecer surpreendente, mas muita gente ao redor do mundo conhece falafel, homus e outras famosas receitas de comidas árabes e palestinas como comidas "israelenses".
Mas de onde veio isso?
Primeiro apresentada como parte de um modo de vida oriental atrasado, a ser superado, a comida palestina passou a ser reapropriada pela colonização israelense como parte do esforço de construir uma identidade "nativa" para os invasores. Este fenômeno é relatado no livro de Yael Raviv, de 2015, chamado "Falafel Nation: cuisine and the making of national identity in Israel".
A autora apresenta o caminho percorrido pela culinária dita "israelense", desde antes da Nakba, como parte da construção da identidade nacional necessaria para a consolidação do projeto sionista na Palestina ocupada. Essa culinária, que surge rejeitando os hábitos alimentares Palestinos, segue um caminho que desemboca na apropriação destes hábitos como israelenses.
Raviv atribui essa apropriação à política de ocupação sionista. O sionismo seria, por sua vez, uma "cultura planejada": isto é, estaria a todo momento buscando angariar recursos para a produção de uma identidade cultural nacional, do "israelense nativo". Essa identidade se produziria então na distinção e no antagonismo em relação tanto ao "árabe" quanto ao "judeu da diáspora". E é aí que entra a comida árabe/palestina.
Edward Said, em A Questão Palestina, afirma que o sionismo se apresentou à Europa como um movimento nacionalista com capacidade de ser uma ponte entre oriente e ocidente, sem pertencer nem a um nem ao outro - white, but not quite. Essa posição de entre-lugar, nos termos de Bhabha, traz em si uma série de dificuldades na hora de constituir uma identidade nacional para a população dessa futura ocupação.
O desafio de fazer com que pessoas de diversas nacionalidades colonizem a Palestina envolve ainda questões práticas: o que plantar, o que comer lá, se você acabou de chegar da Europa e não sabe tratar da terra Palestina?
Se, por um lado, o modo de vida da Europa parecia ser inviável na Palestina ocupada, o dos "árabes" estava abaixo dos padrões dos colonos. A "eficiência", a "ciência" e a "civilização" de seus modos são os pontos que os sionistas mobilizam para se diferenciar dos "árabes", como destaca Reicher (2016). Da culinária à arquitetura (Ram, 2014), a destruição da paisagem anterior para a reconstruir à própria imagem e semelhança é uma constante no empreendimento colonial de Israel.
Mas isso não basta para dar concretude a uma identidade "nativa" israelense. Pense que, por mais que as ações concretas do movimento tenham sido de colonização, este se compreende como um movimento "nacionalista". E qual o conteúdo dessa nacionalidade?
Por isso o projeto colonial de povoamento "civilizador", dedicado a se diferenciar do "árabe", se conjuga com elementos culturais palestinos - entre eles a comida - para produzir um "israelense nativo" diferenciado dos demais integrantes da diáspora judaica. Daí surgem o homus e o falafel "israelenses", apropriados como forma de apresentar a nacionalidade israelense como "natural, constante e historicamente ligada à terra de Israel" (Raviv, 2015. p.32).
A identidade nacional nativa cara ao projeto político do sionismo se fez, então, na tensão entre o esforço de produzir na Palestina Ocupada uma mímica do Ocidente, por um lado, e na posterior apropriação cultural de elementos do cotidiano dos palestinos como forma de dar substância à colonização que se pretende nacionalidade.
Não se trata, portanto, de uma essência que torna estas comidas propriedade exclusiva de um grupo, mas da deliberada destruição dos laços dos palestinos com o território. Destruição essa que ocorre simultaneamente à apropriação da comida, símbolo dessa relação, pelos colonizadores. A "re-arabização" da comida "Israelense" (Ranta, 2015) deve ser vista não como uma reconciliação entre ocupado e ocupante, portanto, mas como parte de um longo esforço de transformação do ocupante em "nativo". Isso se fez e faz tomando casas e terras, mas também se faz tomando as formas de existir no território.
O projeto colonial-que-se-pretende-nacionalista contra os palestinos envolve mais que o controle de corpos, casas, documentos e fronteiras. Envolve o roubo de qualquer conteúdo positivo do que seja ser palestino, para que outros possam "ser nativos" em seu lugar.
Na próxima vez que você vir alguém falar em comida, cozinha ou culinária israelense, lembre-se: o falafel não surgiu em 1948. E, embora seja um patrimônio cultural de toda a humanidade, associar este ou quaisquer outros símbolos palestinos ao projeto colonial de Israel é profundamente ofensivo às suas vítimas.
Referências:
BHABHA, HOMI. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG
HIRSCH, D; TENE, O. Hummus: The making of an Israeli culinary cult. Newbury Park: Journal of consumer culture, v. 13, n. 1, p. 25–45, mar. 2013.
KATTAN, Fadi. Teta’s kitchen (online). 2018. Disponível em: https://www.fadikattan.com/teta-s-kitchen . Acesso em 27 de maio de 2021.
RAM, Moriel. White But Not Quite: Normalizing Colonial Conquests Through Spatial Mimicry. Antipode, 46: 736-753. 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1111/anti.12071. Acesso de 13 de maio de 2022.
RANTA, R. Re-Arabizing Israeli Food Culture. Food, Culture & Society, v. 18, n. 4, p. 611–627, 2 out. 2015.
RAVIV, Yael. Falafel nation: Cuisine and the making of national identity in Israel. U of Nebraska Press, 2015.
REICHER, A. Yael Raviv, 2015: Falafel Nation: cuisine and the making of National Identity in Israel. Dialectical Anthropology, v. 40, n. 1, p. 37–43, 1 mar. 2016.
SAID, Edward. A Questão Palestina. São Paulo: Unesp
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