Relembrando o plano de retirada de Israel em Gaza
O que: Israel desmantelou seus assentamentos ilegais na Faixa de Gaza, retirando todos os colonos e tropas de infantaria do território ocupado.
Quando: 15 de agosto de 2005
Onde: Faixa de Gaza, Palestina ocupada
O que aconteceu?
Em 15 de agosto de 2005, Israel começou a retirar-se da Faixa de Gaza, ocupada por forças israelenses desde a chamada Guerra dos Seis Dias, em 1967. Por 38 anos, Israel implementou 21 assentamentos por todo o território litorâneo e transferiu aproximadamente 9.000 colonos para a região, em violação flagrante à lei internacional.
Diante de custos cada vez maiores para administrar o território, Israel decidiu retirar suas forças armadas e colonos ilegais da Faixa de Gaza. Os colonos não desejavam sair; portanto, diante de câmeras de TV de todo o mundo, foram vistos arrastados de seus assentamentos, um perfeito momento de relações públicas para demonstrar a “boa vontade” de Israel em retirar-se dos territórios ocupados, em uma suposta tentativa de “reacender” o processo de paz.
Catorze anos depois, as forças israelenses não foram de fato retiradas da Faixa de Gaza; Israel ainda mantém o controle das terras da fronteira, acesso ao mar e espaço aéreo. A população de Gaza – estimada em 1.9 milhões de pessoas – permanece sob “controle remoto” da ocupação israelense e sob um cerco rigoroso, responsável pela destruição da economia local e do modo de vida dos palestinos.
O grande plano de Sharon
Embora a retirada tenha oficialmente começado em 2005, a política foi traçada muito antes. Em meados dos eventos da Segunda Intifada – levante popular por todos os territórios palestinos ocupados, entre setembro de 2000 e o início de 2005 –, o então Primeiro-Ministro de Israel Ariel Sharon propôs o plano de retirada da Faixa de Gaza.
Logo antes das eleições israelenses, em janeiro de 2003, Sharon expressou apoio à continuação do processo colonizatório de Israel sobre a Faixa de Gaza, ao afirmar que “o destino de Tel Aviv é o destino de Netzarim”, assentamento localizado ao sul da Cidade de Gaza. Logo após sua vitória eleitoral, Sharon pareceu mudar de ideia; em dezembro, explicou que “o propósito do plano de retirada é reduzir o terrorismo tanto quanto possível, e garantir aos cidadãos israelenses o máximo de segurança.”
Sharon prosseguiu: “O processo de retirada levará a uma melhora na qualidade de vida [dos israelenses], ajudará a fortalecer a economia de Israel, […] aumentará a segurança para os residentes de Israel e aliviará a pressão imposta sobre a FDI [Forças de Defesa de Israel] e as forças de segurança.”
Em abril de 2004, Netanyahu enviou uma carta ao então Presidente dos Estados Unidos George W. Bush, na qual enfatizava seu ponto de vista sobre a retirada, propondo que Israel “realocasse suas instalações militares e todas as aldeias e cidades israelenses na Faixa de Gaza.” O plano deveria incluir também a remoção de quatro assentamentos ilegais no norte da Cisjordânia.
Em outubro de 2004, o Knesset – parlamento de Israel – concedeu aprovação preliminar para a proposta de Sharon. Um de seus críticos mais enfáticos foi Benjamin Netanyahu, então Ministro de Relações Internacionais, que ameaçou renunciar do governo caso Sharon dispusesse o plano sob referendo popular. Netanyahu eventualmente recuou, mencionando a “nova conjuntura” apresentada pela morte de Yasser Arafat, líder palestino de longa data, em 11 de novembro de 2004.
Luz, câmera, ação
Em 15 de agosto de 2005, Israel começou a executar sua retirada. Gush Katif – bloco de assentamentos no sul da Faixa de Gaza – foi declarado zona militar restrita, e a travessia de Kissufim, principal entrada para o assentamento israelense, foi fechada.
Às 8 horas da manhã do tempo local – 5h em Greenwich e 2h no horário de Brasília –, forças israelenses entraram em Gush Katif, investindo de porta em porta, com instruções para que os colonos deixassem o local. Alguns concordaram em fazê-lo pacificamente, com indenizações de até US$ 500.000. Outros se recusaram, o que levou o Exército de Israel a arrastá-los à força de seu assentamento.
Imagens dos colonos sendo arrastados em desespero de suas casas foram transmitidas para todo o mundo. Soldados israelenses, relutantes e com lágrimas nos olhos, seguiam ordens superiores. Algumas crianças deixaram o assentamento de modo bastante dramático, as mãos para cima, vestindo Estrelas de David amarelas sobre o peito, similar à marca dos judeus durante o Holocausto. Estes “rios de lamentações” foram descritos pela imprensa israelense como “cafona” e “rasteiro”; muitos israelenses condenaram veementemente a invocação do Holocausto pelos colonos de Gush Katif.
Como observou Donald Macintyre – ex-chefe do escritório do jornal britânico The Independent em Jerusalém –, “havia algo de teatral nesta retirada forçada – de fato, havia algo teatral em toda a retirada israelense da Faixa de Gaza.”
Em 22 de agosto, a evacuação estava completa. As forças israelenses demoliram com tratores milhares de casas, edifícios comunitários e locais religiosos; mesmo os corpos enterrados em cemitérios judaicos foram exumados e realocados para Israel.
A maior parte do aparato militar israelense foi removida; em 21 de setembro, o governo declarou a Faixa de Gaza como território extrajudicial e designou suas travessias ao enclave como fronteira internacional; portanto, requerindo documentação para deslocar-se de um ponto ao outro.
Nos dias seguintes, os palestinos caminharam sobre as ruas dos assentamentos então abandonados, inacessíveis para eles durante décadas. Crianças recolheram bolas de futebol e brinquedos deixados para trás por crianças israelenses e levaram para compartilhar com seus irmãos e irmãs. As pessoas comemoraram o fim da ocupação, outras correram para ver o mar, pela primeira vez. A celebração não duraria muito.
O que aconteceu a seguir?
Plantando semente
Como destaca Macintyre, embora a retirada “realmente tenha sido um precedente histórico, o paradoxo foi que também marcou o início de um bloqueio duradouro e deteriorante contra a Faixa de Gaza, além dos três ataques militares subsequentes executados por Israel, muito mais devastadores do que quaisquer outros na turbulenta história recente do território.”
Talvez, as sementes do que viria a surgir estivessem plantadas desde setembro de 2005. Menos de uma semana após Israel declarar Gaza como território extrajudicial, jatos israelenses bombardearam o território litorâneo, mataram inúmeros palestinos, dentre os quais Mohammed Khalil, comandante da Jihad Islâmica. Os ataques israelenses também atingiram uma escola e outros edifícios supostamente utilizados para fabricar foguetes.
A narrativa israelense sobre a retirada alega que, após sua decisão de deixar Gaza, os palestinos receberam uma oportunidade de ouro para se tornarem economicamente prósperos. Esta narrativa costuma enfatizar que as estufas deixadas para trás pelos colonos foram, segundo relatos unilaterais, imediatamente destruídas pela população palestinas, em um surto característico de falta de visão.
No entanto, embora algumas dessas estufas tenham sido saqueadas por suas peças e ferramentas, a maior parte se manteve intacta. A colheita de novembro daquele ano rendeu US$ 20 milhões em frutos e vegetais prontos para exportação à Europa e outros países; a maior parte desses produtos apodreceu no calor do outono, enquanto esperava inspeções de segurança israelenses na Travessia de Fronteira de Karni. Segundo estimativas da ONU, apenas quatro por cento da colheita da estação foi de fato exportada.
Ocupação por controle remoto
Em janeiro de 2006, foram realizadas eleições para o Conselho Legislativo da Palestina (CLP), por toda a Faixa de Gaza e Cisjordânia ocupada. O Hamas, então movimento popular palestino, ganhou 74 dos 132 assentos, derrotando o Fatah – que havia dominado a política palestina por décadas. Ismail Haniyeh, líder do movimento islâmico, foi eleito Primeiro-Ministro da Autoridade Palestina.
Em fevereiro, Israel havia suspendido a transferência de impostos sobre produtos importados à Autoridade Palestina (AP), impondo restrições de viagem sobre membros do Hamas em Gaza. Após o Fatah se recusar a cooperar com o governo liderado pelo Hamas – após uma facção interna ao grupo tradicional receber o apoio de Israel e Estados Unidos para realizar um golpe contra o Hamas –, uma guerra civil insurgiu, levando à eventual dissolução do governo em junho de 2007 e à consolidação da hegemonia do Hamas sobre Gaza e do Fatah sobre a Cisjordânia, onde estabeleceu o governo de Mahmoud Abbas na cidade de Ramallah.
No final de 2007, Israel fechou completamente as fronteiras de Gaza, submetendo o território a
um cerco severo mantido até hoje.
No decorrer dos doze anos de bloqueio, Israel continuou a estrangular à força toda a Faixa de Gaza. Após três ofensivas militares israelenses de larga escala – nas quais, quase 4.000 palestinos foram mortos – e inúmeros ataques aéreos subsequentes, a infraestrutura do território e do sistema de saúde local está em pedaços. Aproximadamente 54 por cento da população de Gaza está desempregada; estima-se que 53 por cento vivem oficialmente abaixo da linha da pobreza, com renda de US$ 2 por dia.
“Inabitável”, “prisão a céu aberto” e ocupação de “controle remoto” são alguns dos lugares-comuns utilizados para descrever o território litorâneo atualmente. Gaza permanece ocupada, sem qualquer controle sobre suas próprias fronteiras, águas territoriais ou espaço aéreo. Enquanto isso, Israel mantém quase nenhuma de suas responsabilidades como potência ocupantes, sem ao menos prover serviços básicos aos civis palestinos residentes de Gaza.
Reassentamento
Em Israel, a retirada é vista amplamente como um erro, não devido às condições humanitárias degradantes consequentemente impostas sobre os palestinos, mas porque não trouxe qualquer “vantagem diplomática ou de segurança” ao estado sionista.
Hoje, membros de alto escalão das autoridades israelenses, incluindo Miri Regev – Ministro da Cultura – e Yuli Edelstein – Presidente do Knesset – expressam com frequência seu arrependimento quanto à retirada israelense de Gaza. Políticos da direita israelense, como Ayelet Shaked – líder da coalizão Direita Unida – e Bezalel Smotrich – Ministro dos Transportes –, já exigiram a revogação da retirada e a reconstrução dos assentamentos ilegais israelenses no território de Gaza.
Às vésperas das eleições gerais em Israel, em setembro de 2019, realizadas pela segunda vez somente neste ano, os assentamentos na Faixa de Gaza tornaram-se instrumentos de retórica por esses representantes da direita israelense, como forma de abordar o suposto erro histórico de Ariel Sharon. Estes mesmos políticos advogam pela anexação israelense da chamada Área C da Cisjordânia ocupada. Sendo assim, o próximo mandato do Knesset pode ser responsável pelo reassentamento da Faixa de Gaza por colonialistas israelenses, submetendo a população palestina ao controle militar direto mais uma vez.
Fonte: Middle East Monitor
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