Transferir embaixada para Jerusalém pode fazer do Brasil alvo de terroristas, diz especialista em Oriente Médio
O risco está em adotar um posicionamento que ninguém adota, exceto os EUA. Então, sem legitimidade. Assim, a vulnerabilidade brasileira diante de quaisquer represálias dessas organizações terroristas se apresenta como um elemento real", afirma Renatho Costa
Especialista em Oriente Médio e autor do livro “Os aiatolás e o receio da República Islâmica do Irã”, Renatho Costa, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) acredita que a proposta do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) de transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalémpode gerar problemas que vão muito além da questão econômica – como o boicote dos países árabes, responsável pela importação de cerca de 23% da proteína animal produzida no Brasil.
Para ele, esse movimento no intrincado xadrez diplomático internacional pode gerar o entendimento de que o Brasil abraça a causa sionista, influenciando diretamente o comportamento de organizações extremistas islâmicas. “E, como o Brasil não está preparado para a atuação de organizações terroristas, pode ser um alvo fácil.”
A disputa por Jerusalém, que abriga locais sagrados para judeus, cristãos e muçulmanos, acontece desde antes da criação do Estado de Israel. Em 1947, em sessão presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu pelo plano de partilha da Palestina entre um Estado árabe e outro judeu, e Jerusalém foi designada como “corpus separatum” (corpo separado), sob controle internacional.
Em 1948, com a Independência do Estado de Israel, forças do Líbano, Síria, Iraque, Egito, Jordânia e Arábia Saudita atacaram o território, dando início à Guerra Árabe-Israelense. Ao final do conflito, Jerusalém foi dividida, com a parte ocidental sob controle de Israel e a parte oriental controlada pela Jordânia.
Em 1967, Israel capturou a parte oriental de Jerusalém e, desde então, ocupa a cidade inteira e vem construindo assentamentos em Jerusalém Oriental, considerados ilegais pela comunidade internacional. A posição é contestada pelo governo israelense, que ganhou força após o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reconhecer a cidade como capital israelense e transferir a embaixada estadunidense para lá em maio deste ano.
Alinhado à política de Trump, Bolsonaro tem reafirmado a intenção de fazer o mesmo com a embaixada brasileira. “Quem decide a capital do Estado é o respectivo Estado. Não vejo o porquê desta celeuma toda”, disse, após reunião com o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio de Noronha, e o futuro ministro da Justiça, o juiz federal Sergio Moro, no dia 7 de novembro.
Em entrevista exclusiva à Fórum, o doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Grupo de Análise Estratégica Oriente Médio e África Muçulmana (GAE-OMAM) afirma que essa posição de ser um “satélite” dos Estados Unidos nas relações internacionais pode colocar o Brasil em xeque.
“Quanto mais desequilibrado for o posicionamento do Brasil nessa questão, maior será o risco de sofrer represálias. O risco está em adotar um posicionamento que ninguém adota, exceto os EUA. Então, sem legitimidade. Assim, a vulnerabilidade brasileira diante de quaisquer represálias dessas organizações terroristas se apresenta como um elemento real”.
Para Costa, a indicação de Ernesto Araújo para assumir o Itamaraty confirma esse alinhamento, com o agravante de um viés antiquado, calcado na luta “entre o bem e o mal” da Guerra Fria.
“Mais temerário ainda, ele lança argumentos que pressupõem a criação de uma cruzada religiosa para defender supostos Valores. Em certa medida, o futuro chanceler parece ser a projeção do pensamento do presidente eleito no âmbito internacional. Ele não é um conservador, pois há muitos no Itamaraty, ele é um ultraconservador com discurso e pensamento que se forem implementados, deixará uma cicatriz na diplomacia brasileira”.
Leia a entrevista completa.
Fórum: Nos governos Lula e Dilma, utilizando o soft power, o Brasil construiu uma reputação de respeito entre as nações mais influentes e o protagonismo na condução de temas sensíveis junto a países em desenvolvimento. Bolsonaro mostra que será mais “hard” nas relações exteriores. Quais mudanças isso deve provocar no Itamaraty?
Renatho Costa: Precisamos considerar que o Itamaraty é um órgão que desenvolve a política externa proposta pelo governo. Isso se dá com qualquer governo. Certamente os diplomatas têm visões distintas sobre o posicionamento do Brasil frente à comunidade internacional, mas o governo é quem vai estabelecer a linha mestra de atuação. Nesse sentido, partindo de sua premissa de que o futuro governo Bolsonaro mostra uma visão mais ‘hard” no posicionamento às questões internacionais, a qual compartilho, o primeiro aspecto que prevalecerá será a perda substancial do “soft power” que o Brasil conquistou nesses últimos anos. Como consequência imediata, o Brasil não será considerado um ator “neutro” e confiável. Nesse sentido, os processos negociais serão sempre vistos como “suspeitos”. Assim, em tese, o Brasil teria que manter seus interesses a partir de outras capacidades, como seus poderios econômico ou militar. Como o Brasil demonstra fragilidades em ambos aspectos, muito certamente, suas negociações serão tensas e não construirá parceiros para desenvolver projetos no logo prazo, apenas conjunturais. A diplomacia brasileira terá muita dificuldade em manter sua tradição, pois esse modelo que se apresenta é muito impositivo e unilateralista, serve para potências que não precisam negociar e se impõem, ainda que seja altamente questionável a postura, mas para quem não goza do “hard power”, será muito mais complicado.
Fórum: Além da questão econômica, quais impactos a possível transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém pode acarretar nas relações com os países árabes?
Renatho Costa: Creio que altera substancialmente o direcionamento da política externa brasileira no que tange à defesa do direito de autodeterminação, pois o Brasil é um dos grandes defensores desse direito e, além de ter sido referendada pela ONU a criação dos dois estados na Palestina, o Brasil reconheceu o estado palestino com base em seus valores. Agora, a transferência da embaixada, no limite, é desconsiderar a demanda da comunidade palestina, haja vista, inclusive, que Jerusalém não é reconhecida pela comunidade internacional como a capital israelense – trata-se de uma cidade ocupada por Israel e que deveria estar sob administração internacional. Então, aceitar a transferência significa deslegitimar a demanda palestina que, se acompanharmos as cúpulas da Liga Árabe, é o tema mais importante desde sua fundação. Pode-se haver embates entre os países árabes, mas a defesa da causa palestina é flagrante. Outra preocupação surge, haja vista essa ruptura com a causa palestina poder gerar o entendimento, por parte de organizações extremistas islâmicas, de que o Brasil abraça a causa sionista. A partir daí, a blindagem que o país tinha, que estava pautada em sua visão equilibrada exposta por sua diplomacia, se perde completamente. E, como o Brasil não está preparado para a atuação de organizações terroristas, pode ser um alvo fácil. Quanto mais desequilibrado for o posicionamento do Brasil nessa questão, maior será o risco de sofrer represálias. O risco está em adotar um posicionamento que ninguém adota, exceto os EUA. Então, sem legitimidade. Assim, a vulnerabilidade brasileira diante de quaisquer represálias dessas organizações terroristas se apresenta como um elemento real.
Fórum: Essa aproximação ideológica de Bolsonaro com os Estados Unidos e Israel pode ocasionar problemas diplomáticos para o Brasil? Quais?
Renatho Costa: Creio que o maior problema, inicialmente, tende a ser quanto ao aspecto comercial. A notória preferência que o Brasil demonstra por se submeter aos interesses estadunidenses, inclusive se sobrepondo à China – devido à sua ideologia comunista –, pode acarretar a perda de mercado internacional. E, quanto mais dependente dos EUA, menor será sua autonomia no campo da política internacional, tendo, inclusive, de atuar na América do Sul para atender aos interesses estadunidenses. Basicamente, o Brasil voltará a ser um satélite dos EUA. Não quero dizer que o Brasil tenha tido autonomia absoluta para atuar como quisesse internacionalmente, seria ingenuidade. A América do Sul sempre esteve sob influência estadunidense, mas com graus distintos de atuação. No entanto, quanto maior é a inserção internacional do país e ele ganha aliados, diversificando suas relações comerciais, aumenta a dificuldade de interferência nos desígnios da política externa brasileira por parte dos EUA. Assim, o alinhamento automático ao modelo do “America First”, por si, já expõe que o Brasil será um ator coadjuvante, que nunca terá sua demanda atendida, se confrontar com os interesses estadunidenses. E, sem outra possibilidade de conexões externar, terá de abaixar a cabeça e dizer “Yes, sir”. A defesa dos interesses israelenses e mesmo sua idealização, apresenta-se como um agravante. Manter relações com o estado de Israel, historicamente, o Brasil mantém, mas elencar essa relação como prioritária e idealizá-la, não me parece que agregue nada à política externa brasileira, apenas demonstra ingenuidade e um posicionamento ideológico que o presidente eleito sempre criticava. Por outro lado, os países islâmicos tendem a se afastar do Brasil, quanto mais ele priorizar essa aproximação com Israel, que, no limite, não poderá trazer benefícios para o país, exceto o que já existe.
Fórum: Como você vê a situação do corpo diplomático brasileiro frente ao governo Bolsonaro e qual análise geral você faz das propostas de Bolsonaro para a diplomacia brasileira?
Renatho Costa: Na verdade, o presidente eleito somente disse que não queria uma diplomacia pautada em ideologia e que dará prioridade aos interesses nacionais. Bom, a questão ideológica é algo questionável, pois parece-me que ele tentará impor uma visão mais à direta e com alinhamento automático aos EUA. Não é algo novo, mas que parecia termos superado. O sistema internacional mudou e o Brasil não precisa ser satélite dos EUA, como o presidente quer, inclusive entregando a Base de Alcântara para os estadunidenses, ao invés de investir no desenvolvimento aeroespacial. Há muitas indicações de que os interesses estadunidenses pautarão a política externa brasileira, então, o corpo diplomático brasileiro, devido à sua qualidade técnica, terá de tentar diminuir os impactos negativos dessa atitude no longo prazo. Se não é possível ir contra as diretrizes que serão apresentas pelo presidente eleito, a habilidade fará com que o Brasil não perca tudo que conseguiu. Falta ao presidente eleito conhecimento sobre a estrutura do sistema internacional e um assessor que lhe mostre que não é possível fazer como os EUA e dizer “Brazil first” com os mesmos resultados. O Brasil, no máximo, pode ser considerado uma potência regional, mas seu reconhecimento estava pautado na política do “soft power” que vinha construindo na história recente. Se isso deixa de existir, então, o poder militar e econômico terá de falar mais alto. Creio que haverá diplomatas para cumprir esse papel “suicida” para o Brasil, mas o país perderá muito no longo prazo e outro presidente terá de reconstruir a história que o Brasil vinha trilhando até então no cenário internacional. Estive em vários países do Oriente Médio fazendo pesquisas e, sem dúvida nenhuma, além de Pelé e Neymar, que todos conhecem, dependendo da idade, Lula da Silva é um nome que sempre mencionam. Bolsonaro, pelo que expôs até o momento, parece jogar o Brasil para um modelo de política externa que não mais cabe no século XXI. Mas como ele disse que faria com o que país voltasse para a década de 1950, faz todo sentido essa sua preocupação com “comunistas” ao invés de entender um mundo no qual o multilateralismo deveria prevalecer.
Fórum: O que achou da escolha de Ernesto Araújo para comandar o Itamaraty?
Renatho Costa: Quando o presidente eleito anunciou que escolheria um diplomata de carreira para o Ministério de Relações Exteriores houve um momento de certa tranquilidade, pois (o Itamaraty) deixaria de ser ocupado por políticos como os senadores José Serra ou Aloysio Nunes que defendem uma política assumidamente privatista e pró-Estados Unidos. Contudo, com o anúncio oficial de Ernesto Araújo, a situação ficou ainda pior. Como o presidente eleito tem demonstrado pouco conhecimento sobre política externa, muito provavelmente, quem irá ditar as diretrizes da PEB (Política Externa Brasileira) será o ministro Ernesto Araújo e não o presidente. Isso é uma inversão de papéis, pois o Itamaraty é um órgão executor da política externa. Com a liberdade absoluta para agir e, utilizando seus artigos e pronunciamentos como referência para se projetar uma futura PEB, creio que o alinhamento aos EUA será absoluto, já que o novo chanceler entende que Trump é a salvação do Ocidente. Isso é péssimo para o Brasil, uma vez que seus ganhos e projeção internacional advieram da defesa de uma política multilateralista fundamentada em seu soft power. Como o país não tem poder para se projetar como uma potência militar, nem haveria a possibilidade disso acontecer na América Latina devido à ação estadunidense. O multilateralismo foi a chave para abrir o Brasil para o continente africano, América do Sul, União Europeia, Brics, etc. Agora, abrindo mão dessa estratégia e fazendo a opção por se submeter abertamente aos interesses estadunidenses, além de espaço político, certamente problemas comerciais surgirão, como a possibilidade de os países islâmicos boicotarem a carne brasileira se houver a mudança da embaixada brasileira em Israel. Ernesto Araújo é uma figura que parece vivenciar os tempos da Guerra Fria em que o alinhamento deveria ser entre “o bem ou o mal”, parece que ele não compreende a pluralidade de relações que se constituíram com o fim da Guerra Fria. Mais temerário ainda, ele lança argumentos que pressupõem a criação de uma cruzada religiosa para defender supostos valores. Em certa medida, o futuro chanceler parece ser a projeção do pensamento do presidente eleito no âmbito internacional. Ele não é um conservador, pois há muitos no Itamaraty, ele é um ultraconservador com discurso e pensamento, que se forem implementados, deixarão uma cicatriz na diplomacia brasileira.
Fonte: Revista Forum
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